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18/06/1955 – T

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2ª palestra em Londres

Acho que valeria a pena investigar completamente um problema, com aquela percepção da qual estivemos falando ontem, para ver se podemos examinar todo o processo – não teoricamente, mas realmente – e descobrir por nós mesmos a verdade do que está sendo dito. Para esse fim, parece-me muito importante saber como escutar. A maioria de nós não escuta verdadeiramente. Temos várias teorias, reações, respostas, as quais realmente bloqueiam o escutar verdadeiro. Gostaria de discutir um problema que penso ser bastante complexo e que, portanto, precisa de uma atenção na qual não haja nem a luta para compreender, nem a atitude de meramente escutar uma explanação. Vamos, porém, acompanhar o assunto estando alertas e cônscios, e, assim, explorar, descobrir a totalidade do problema.

Nossa cultura baseia-se na inveja, e somos produto dessa cultura. Há inveja não só em assuntos sociais, em que há competição com os outros para alcançar um resultado, certa posição, amealhar poder, e assim por diante; mas também interiormente, por assim dizer, espiritualmente, há essa compulsão de aquisição. Penso que a maioria de nós tenha consciência disso. A compulsão de chegar lá, agarrar, compreender, ser, alcançar um objetivo, encontrar a felicidade, Deus, ou o que quer que seja – todas essas coisas são obviamente um processo de aquisição, a compulsão da inveja. A sociedade, à medida que se desenvolve, vai controlar externamente mais e mais o instinto aquisitivo por meio de legislação, mas, interiormente, não há legislação que possa controlá-lo. E parece-me que esse instinto aquisitivo é uma das questões principais, porque nele se contém todo o processo do esforço. Se realmente pudermos investigar isto e ver se podemos realmente livrar-nos dessa compulsão de encontrar um abrigo, um refúgio, de tornar-nos alguma coisa espiritualmente, então penso que teremos resolvido um enorme problema – talvez o único problema.

Afinal, quando buscamos a realidade, ou Deus, às vezes desejamos desistir do mundo com sua competição, suas divisões, sua luta de classes e todo o resto, e procuramos então tornar-nos monges ou sannyasis. Mas não abandonamos esse processo de aquisição nem mesmo quando nos tornamos eremitas, nem mesmo quando renunciamos ao mundo. Ainda existe o desejo de nos “tornarmos alguma coisa”, de seguir outra pessoa para compreender, para encontrar a verdade; existe sempre a sensação de inveja, de aquisição, de ganho. Em todo esse processo está baseada a nossa cultura, tanto socialmente quanto espiritualmente. Todos os nossos esforços dirigem-se a adquirir virtude, ou bens, ou propriedades, ou um estado de felicidade, um estado de bem-aventurança – e nisso está implicado esse empenho constante, esse esforço constante, a luta para ser alguma coisa. Penso que isso é um fato, e que a maioria de nós tem consciência dele.

Será que podemos ficar conscientes de todo esse assunto, não só conscientemente, mas no fundo do inconsciente, e assim ficar livres dessa compulsão? Porque, enquanto houver esse empenho, por mais benéfico que possa ser em um nível, torna-se prejudicial, um empecilho, em outro nível. Todos somos treinados, educados, para competir, interiormente e exteriormente, e, portanto, não há amor por coisa alguma em si mesma, mas somente uma sensação de algo a ser alcançado. Certamente, é importante descobrir se a mente pode ficar livre de toda essa busca de aquisição.

Afinal, procurar tornar-se virtuoso é uma forma de inveja, não é? Podemos discutir isso? Enquanto a mente estiver presa a alguma forma de inveja, alcançando um objetivo, buscando um resultado, buscando o céu, a paz, ou a realidade, há necessariamente constante acumulação de várias formas de memória, o que realmente impede a pessoa de descobrir o real. Essencialmente, estamos com medo de ser o que somos; queremos mudar o que somos e, no processo de mudança, surge todo o problema do “como”. Nosso desejo é mudar para ser outra coisa, e, portanto, estamos sempre à procura de um método – como alcançar, como ser não-violento, etc.

A questão é que a nossa cultura é aquisitiva – o que significa essencialmente invejosa; nossa cultura fundamenta-se na inveja. Pode-se ver isso muito facilmente em termos sociais. Mas, interiormente, por assim dizer, espiritualmente, intelectualmente, bem no fundo, o mesmo acontece – a inveja é o fundamento da nossa busca. Porque estou infeliz, sofrendo, quero mudar isso, fugir para outro estado e, assim, surge o problema de como atingir aquele outro estado. Portanto, seguimos diversos professores, ouvimos várias palestras, lemos livros religiosos, tentamos reformar-nos, tentamos disciplinar-nos – sempre para atingir um resultado.Se pudermos ficar conscientes de tudo isso, então acho que talvez possamos compreender um estado no qual não haja esforço algum.

Podemos realmente discutir isso?

Pergunta: É errado tentar melhorar-nos? O que estamos fazendo aqui escutando o senhor se não estivermos tentando melhorar?

Krishnamurti: Essa é realmente uma boa pergunta, se pudermos examiná-la. O que é automelhoramento?

Primeiro, se for para haver melhoramento, precisamos compreender o que é o ego, não é verdade? Pensamos ser permissível haver automelhoramento. Mas o que queremos dizer com o ego, com o ‘eu’? Existe um ‘eu’, um ego, que seja constante, que possa ser melhorado, uma coisa que tenha continuidade real? – não somente a continuidade que desejamos ter, mas, na realidade, há uma continuidade do ‘eu’ separada da continuidade do organismo físico com o seu nome, suas qualidades, vivendo em certo lugar e com certos relacionamentos, tendo um emprego, etc.? Fora disso, existe um ‘eu’ que continua?

Auditório: Sim. Não.

Krishnamurti: Certamente, isso não é meramente questão de opinião, de sim ou não. Se quisermos descobrir, não podemos saltar para nenhuma conclusão. Não podemos adotar uma opinião ou um desejo como se fosse um fato. Queremos descobrir se existe um ‘eu’ que possa melhorar, receber acréscimos, se existe uma entidade permanente que vá melhorando e melhorando. Ou, há desejos, impulsos, compulsões contraditórios – um dominando o outro, e aquele que domina deseja continuar, suprimindo os outros desejos? Ou, existe só um estado a fluir, uma mudança constante sem nenhuma permanência, e uma mente que, compreendendo essa impermanência, esse fluxo, essa transitoriedade, deseja ter algo permanente que ela denomina ‘eu’, e deseja que o ‘eu’ continue através do melhoramento?

Quando falamos sobre automelhoramento, sobre eu tornar-me melhor, mais nobre, menos isso e mais aquilo – certamente isso tudo é um processo de pensamento, não é verdade? Não há nenhum ‘eu’ permanente, exceto o desejo de ter permanência. Assim, será que há um melhoramento do ‘eu’, será que eu posso me aperfeiçoar? O que significa “melhorar”? Sou ambicioso; quero melhorar, ser não ambicioso. Sou invejoso, irritável, e quero mudar, ser outra coisa. Faço grandes esforços, disciplino-me, faço meditação, e mais isso e mais aquilo, tentando melhorar-me todo o tempo; mas nunca faço a pergunta fundamental: “O que é o ‘eu’ que quer melhorar?” Quem são essas duas entidades – aquela que observa e quer mudar, e aquela que é observada?

Estou me fazendo claro?

Auditório: Sim. Sim.

Krishnamurti: Então, quando digo que preciso aperfeiçoar-me, qual é a entidade que diz isso?E existe uma entidade, um “eu”, diferente do observador?

Discutamos isso, examinemo-lo. Sou ambicioso, invejoso, e quero melhorar, quero livrar-me da inveja. Nisso existem duas entidades, não é verdade? – a que é invejosa, e a outra, que quer livrar-se da inveja.

Comentário: Não necessariamente – só há uma entidade.

Krishnamurti: Vejamos. Qual é realmente o processo? Sou invejoso e sinto que isso não é correto; há dor na inveja, ela é imoral e quero mudar a inveja, ou o que quer que seja. Há dois estados dentro de mim. Mas eles estão dentro do mesmo campo de pensamento, não é verdade? O “eu” que é ambicioso, e o “eu” que deseja mudar – ambos são “eu”, não é verdade?

Comentário: No instante em que você decide mudar, você já não é ambicioso.

Krishnamurti: Não estamos agora discutindo como ou o que mudar. Quando falamos de melhorar-nos, será que há mesmo um melhoramento, ou só a mudança de uma capa para outra, substituindo um conjunto de palavras e sentimentos por outro?

Comentário: Não há melhoramento a menos que você ponha em ação os seus ideais.

Krishnamurti: A maioria de nós persegue ideais – “o bem”, “o belo”, “o que é verdadeiro”, “a não-violência”, etc. E sabemos por que os perseguimos – porque esperamos modificar-nos por meio de ideais. Os ideais funcionam como alavanca e nos compelem a modificar-nos, a nos tornarmos mais perfeitos. Isso é um fato real, não é mesmo?

A violência, por exemplo. Sou violento, e, assim, tenho o ideal da não-violência. E eu persigo esse ideal, tento praticá-lo, estou constantemente pensando nele, tentando modificar-me a mim mesmo e aos meus pensamentos para conformar-me ao ideal que estabeleci para mim. Mas, será que mudei realmente? – ou será que apenas substituí um conjunto de palavras por outro?Pode-se mudar a violência por meio de um ideal?

O que é importante, certamente, não é o ideal, mas o real, a compreensão daquilo que é. O importante é compreender o meu estado de violência, de onde provém, quais suas causas, etc. – e não tentar alcançar o estado de não-violência. Não é assim mesmo? Não é extremamente difícil para a maioria de nós desistir de ideais, descartá-los, e preocupar-nos com o que é realmente? Se você está apenas interessado no que é, então há alguma forma de automelhoramento?

Pergunta: Todas essas coisas desaparecem se as discutirmos? (Risadas)

Krishnamurti: Não estamos interessados – estamos? – em como fazer as coisas desaparecerem.Queremos descobrir – não é verdade? – como transformar algo como a ambição sem conflito.

Pergunta: Ficarmos interessados no que é – digamos, na violência – isso não fortalece a violência?

Krishnamurti: Será que fortalece? Por favor, examinemos esse assunto. Todos nós aqui, aparentemente, somos grandes idealistas; aceitamos ideais como meio de modificar-nos. Assim, podemos prosseguir a partir daí, vagarosamente?

Pergunta: Um ideal não é bom ou ruim dependendo do modo como fazemos uso dele? Você pode comprar coisas que são boas ou ruins com o seu poder, o seu dinheiro – e o mesmo com os seus ideais.

Krishnamurti: Pensava que isso fosse um assunto antigo, há muito tempo descartado, mas vejo que não é assim. Por que temos ideais?

Comentário: Em boa parte porque fomos educados para ter ideais.

Krishnamurti: Mesmo que você não tivesse sido educado em determinado padrão de pensamento, não criaria ideais para si?

Comentário: Deus nos deu um cérebro com o qual pensar, e, com ele, criamos ideais para nos ajudarem a progredir.

Krishnamurti: Examinemos este assunto com cuidado, passo a passo, para descobrirmos pelo menos uma coisa esta noite – por que temos ideais. Vejamos se os ideais têm alguma importância em nossa vida – profundamente, não superficialmente – e toda a implicação do que está envolvido nos ideais. Será que eles têm alguma importância? Caso não tenham importância, será que podemos abandoná-los completamente e talvez olhar para as coisas de modo totalmente diferente?

Comentário: Pensar nos ideais nos dá um grande prazer.

Pergunta: Os ideais não seriam uma aproximação da luz? Não somos atraídos para o alto sem mesmo o sabermos?

Comentário: Certamente, estamos insatisfeitos com o que somos, e estamos tentando sair desta situação. Se aquilo que somos nos causa sofrimento, então tentamos afastar-nos do sofrimento e aproximar-nos daquilo que nos dá prazer e felicidade.

Krishnamurti: As coisas são assim, não são? Estamos insatisfeitos com o que somos e queremos afastar-nos disso, queremos livrar-nos do estado de insatisfação. É com isso que estamos preocupados, não é mesmo? – e não com o ideal. Nossa preocupação é esta: estamos insatisfeitos com o que somos.

Comentário: Não acho que seja assim. Estou perfeitamente satisfeito com o que sou. Não vejo por que alguém não estaria. (Risadas)

Krishnamurti: Se estou perfeitamente satisfeito com o que sou, então não há problema algum, não temos um caso. Mas, certamente, a maioria de nós está insatisfeita.

Pergunta: Será que temos ideais porque em cada ser humano existe uma centelha divina?

Krishnamurti: Senhor, o que significa isso? Como é que sabemos disso? Estou insatisfeito com o que sou – esse é, em geral, o estado em que se encontra a maioria de nós. Sou feio e quero ficar bonito; sou ambicioso e quero ser não-ambicioso porque a ambição acarreta dor; sou apegado e quero ser desapegado porque o apego traz tristeza. Essas coisas não passam de formas de insatisfação com o que é, não é mesmo? Esperamos, com a nossa insatisfação, alcançar uma mudança, um resultado: esperamos eliminar a insatisfação. Se apenas pudermos nos concentrar nessa questão agora, talvez compreendamos tudo.

Estou insatisfeito com o que sou. Será que essa insatisfação surge porque estou me comparando com alguma outra coisa? Você entende a pergunta? Estou insatisfeito comigo mesmo porque tenho visto você feliz, satisfeito. Você tem algo que eu não tenho, e eu gostaria de tê-lo.

Pergunta: Se pararmos com tudo isso, se ficarmos cônscios disso, se soubermos que “sou o que sou” – então o que é que resta para buscar, para construir, pelo que lutar? Então, por que estamos frustrados?

Krishnamurti: Acho que, se pudermos ir um pouco mais devagar, sem saltar para conclusões, talvez possamos chegar à raiz deste problema.

Disseram que temos ideais porque somos divinos. Mas eu não sei se sou divino. Alguém pode ter-me dito que há uma centelha divina em mim, mas não sei nada sobre isso, não é verdade? Quero descobrir por mim mesmo se existe essa divindade. E não posso descobrir a verdade disso se a minha mente estiver insatisfeita, pois, estando eu insatisfeito, posso criar uma ideia de divindade que me satisfaça. Estando insatisfeito psicologicamente, interiormente, toda a minha busca resume-se a encontrar satisfação. Então eu crio uma verdade, um estado, uma realidade, uma bem-aventurança, um refúgio que me satisfaça; portanto, isso não passa de criação minha. Mas, se eu puder compreender por que estou insatisfeito, todo o processo e todo o conteúdo da insatisfação, então talvez eu compreenda algo muito maior, em vez de simplesmente aferrar-me a uma criação do meu próprio desejo.

Portanto, limitemo-nos a este ponto: estamos insatisfeitos. Então o nosso problema é: estando insatisfeitos, como é que encontramos satisfação? Talvez eu esteja sendo grosseiro, mas isso é o fato real.

Comentário: (Levantando-se e brandindo a Bíblia.) Encontro satisfação na leitura da palavra de Deus, fui convertido e, desde então, tenho lido a palavra de Deus. Estou satisfeito e não quero nada mais.

Krishnamurti: Sim, senhor. Estamos todos buscando satisfação. O senhor encontra satisfação na Bíblia, em um livro; eu talvez encontre satisfação na bebida. O senhor pode encontrar satisfação no poder, na posição, no prestígio, no dinheiro; e eu talvez encontre satisfação no auto-aperfeiçoamento. Assim, estamos todos buscando satisfação. Não é assim?

Auditório: Sim. Sim.

Krishnamurti: Estamos buscando satisfação mediante a realização de um ideal, mediante uma crença. Você pode encontrá-la de um modo, e eu, de outro modo; o seu pode ser um modo tido como nobre, e o meu pode ser um modo vil. Mas a compulsão, o impulso, a tendência, é de encontrar um estado de satisfação que nunca seja perturbado. Não é isso que desejamos?

Auditório: Sim. Sim.

Pergunta: Mas essa compulsão não é logo eliminada quando saímos de nós mesmos? Como ouvir música – ela nos tira de nós mesmos e das nossas limitações.

Krishnamurti: Certamente isso não passa de uma teoria – se eu fizer “isto”, “aquilo” acontecerá. É uma suposição. Mas o fato real é que estamos insatisfeitos e buscamos satisfação. É por isso que você está me escutando, não é verdade? Você tem a esperança de descobrir alguma coisa pelo escutar. Você está insatisfeito, está buscando, está infeliz, frustrado, em contradição, e deseja descobrir um meio de sair dessa confusão, desse caos; e por isso você escuta, na esperança de encontrar a saída.

Sugiro que primeiro descubramos por que existe insatisfação, em vez de preocupar-nos com o como transformá-la em satisfação. O que significa, de fato, estar insatisfeito?

Comentário: É porque não temos a compreensão da consciência suprema.

Krishnamurti: Senhor! Como poderia uma mente tão perturbada, tão ansiosa, tão frustrada, que está constantemente exigindo, desejando – como poderia uma mente assim pensar na consciência suprema ou em qualquer desses ideais? Eles podem muito bem ser tolices. O fato real é que estou perturbado. Por que não começarmos a partir daí? Estou insatisfeito; como vou encontrar satisfação? Esse é o nosso problema, não é verdade?

Auditório: Sim. Sim.

Pergunta: Senhor, a satisfação não é o mesmo que o eu que é perturbado? (sic)

Krishnamurti: Vamos investigar, senhor. Por favor, vamos devagar, passo a passo. Estou insatisfeito, e você também.

Comentário: Estou insatisfeito com que sou. Se eu soubesse o que sou, seria muito mais feliz – mas não sei o que sou.

Krishnamurti: Todo o problema reside aí, não é verdade? Estou infeliz e quero encontrar felicidade. Encontro-me num estado de miséria, frustração e quero encontrar preenchimento.

Auditório: Por quê?

Krishnamurti: Por favor, vamos primeiro ver o fato, em vez de dizer: “Por quê?” Vamos examinar isso. Mas é isso o fato?

Auditório: Sim, é.

Krishnamurti: Então a próxima coisa de que nos ocuparemos é como realizar uma mudança.Estou infeliz e quero ser feliz. Como é que essa mudança será realizada?

Comentário: Sendo feliz.

Krishnamurti: Senhor, se disser a um homem infeliz: “Seja feliz”, isso não terá significado algum, não é verdade?

Pergunta: Vejo que há insatisfação dentro de mim e que, afastando-me dela, minha mente está fugindo.

Krishnamurti: É assim mesmo, não é? Nunca entendi o inteiro processo da insatisfação, mas apenas quero fugir dela, quero sair dela, negá-la. Estou insatisfeito, sou infeliz, sou violento; não gosto desse estado e quero modificá-lo. E tenho o ideal como meio de realizar uma mudança em mim, ou busco alguém que me mostre o modo de ficar satisfeito, como ser feliz.O que significa, realmente, que não compreendi o estado em que estou, mas o estou negando.Certamente, é assim mesmo. Estou negando o estado em que estou porque estou buscando um estado que penso me dará satisfação, felicidade e porá fim à minha frustração. Ao passo que, se não tivéssemos saída, se descartássemos todos os ideais e encarássemos o fato de que estamos insatisfeitos, então poderíamos prosseguir. Mas, enquanto eu estiver fugindo do fato de que estou insatisfeito, por meio do esforço de tornar-me satisfeito, é certo que haverá frustração. Então, quero compreender esse estado de insatisfação com todas as suas implicações, em vez de tentar transformá-lo em outra coisa.

Será que compreendemos isso? E podemos, conversando sobre isso, livrar a mente do ideal e enfrentar o fato de que sou violento? – em vez de perguntar como ser não-violento, o que seria mera fuga ao fato. Posso olhar para o fato?

Podemos examinar isso? Como é que enfrento realmente o fato de que sou violento? O que significa olhar para algo? Significa que posso olhar para mim mesmo sem me condenar? Posso olhar para o fato da violência sem introduzir o desejo de não ser violento? A própria palavra violência tem um sentido condenatório, não é mesmo? Estão me acompanhando?

Auditório: Sim. Sim.

Krishnamurti: Isto é, fico cônscio de que sou violento, invejoso. E, para mim, o que é importante é compreender esse estado, em vez de tentar modificá-lo. Porque o próprio desejo de mudar é uma fuga ao fato. A menos que isso esteja bem claro, não podemos ir mais longe.

A dificuldade aqui é que cada um está seguindo os seus próprios pensamentos, sua própria maneira de traduzir o que está sendo dito. Podemos examinar esta questão juntos, com muita simplicidade? Sou invejoso. Disseram-me, quando criança, que a inveja é errada, e fui condicionado a condená-la; portanto, estou insatisfeito com ela. Li nos livros, e também disseram-me, que a pessoa precisa viver em paz, num estado de amor, e tudo o mais. Então, estou tentando mudar o que sou naquilo que devo ser. O “devo ser” é o ideal, não é mesmo? – o qual representa fuga ao que sou. Acho que isso está bastante claro. Portanto, descartemos o ideal de uma vez por todas. Para a maioria de nós, essa é a coisa mais difícil de fazer.

Primeiro a mente precisa livrar-se do ideal. Talvez eu esteja insatisfeito por causa do ideal.Talvez eu sinta que deva ser alguma coisa nobre, e, porque não o sou, estou insatisfeito. Ou, será que a insatisfação é algo inerente, sem relação com a comparação? Vocês entendem o problema?

Auditório: Sim.

Krishnamurti: Então eu só conheço a insatisfação comparando o ideal com aquilo que sou? E, se não houvesse nenhuma comparação, eu estaria ainda insatisfeito? Se eu não pensasse em termos de mais ou de menos, haveria insatisfação? A insatisfação é inerente ao meu pensamento ao meu ser? Conheço o ideal, estou sendo ensinado sobre ele, e também quero melhorar, tornar-me alguma coisa maior – portanto, estou insatisfeito. Mas, enquanto eu estiver pensando em termos de tempo – ou seja, em tornar-me alguma coisa no futuro – precisa haver insatisfação, certo? Portanto, será que a mente consegue livrar-se de todas as comparações?

Você está me escutando porque deseja alcançar o estado de que falo, não é mesmo? Se eu o alcancei ou não – isso não tem importância. Você quer alcançar esse estado. Por quê? Porque você está insatisfeito, está infeliz, frustrado, você não é nada e quer ser alguma coisa. E esse esforço para sair do estado em que você está e chegar ao estado que você pensa que deve alcançar, é chamado processo de crescimento, não é verdade?

Auditório: Sim.

Krishnamurti: Mas se eu puder compreender o atual estado em que estou, então talvez toda essa ideia de tornar-me alguma coisa, toda a ideia de exigir tempo para crescer, pode ser irrelevante, pode ser completamente falsa. Penso que é. Então o problema é que estou insatisfeito – e já não estou preocupado com o como alcançar satisfação, pois vejo que se trata de uma fuga do fato real da insatisfação, da infelicidade, da frustração. O fato real é que estou frustrado porque busco preenchimento. Não é verdade? Busco preenchimento, portanto, estou frustrado. Então pergunto-me se existe preenchimento possível, afinal. Compreende? Enquanto eu estiver buscando preenchimento, haverá o medo de não me preencher. Portanto, não seria correto descobrir por mim mesmo se afinal existe preenchimento? – em vez de como preencher-me, como livrar-me da frustração na qual fui apanhado. Pois, enquanto eu buscar preenchimento em qualquer de suas formas, tem de haver frustração. Certamente, isso é um fato.

Então, por que busco preenchimento? – no meu filho, no meu emprego, e de todas as outras formas; sabemos o que isso significa, sem mais explicações. Talvez não haja nenhuma possibilidade de preenchimento, e, se buscamos preenchimento, haverá frustração, que resulta em sofrimento. Se eu puder descobrir a verdade – se há mesmo preenchimento – então talvez eu possa ficar livre da frustração. Então, existe preenchimento? Essa é a questão em sua inteireza.Está claro?

Auditório: Sim.

Krishnamurti: Em nossa vida diária, há urgência de preenchimento. E tal urgência se faz acompanhar de frustração, pesar, tristeza, inveja e tudo o mais – coisas com as quais estamos todos familiarizados. Então, sempre há uma lacuna, um senso de insuficiência, não é mesmo?Posso realizar-me em dada direção, mas sentir-me miserável noutra. Isso continua indefinidamente, e, assim, a frustração é um processo contínuo. Assim, o meu problema é descobrir a verdade, ou seja, se existe preenchimento, realização. E a razão pela qual queremos realizar-nos.

Comentário: Por termos medo do estado de não-realização, temos medo de ficar nesse estado.

Krishnamurti: Investiguemos, olhemos para dentro de nós mesmos. O preenchimento é um estado transitório; a compulsão muda constantemente. O estado de preenchimento permanente não existe, não é mesmo? Então, por que existe essa compulsão de preencher-se?

Comentário: Porque ansiamos por permanência.

Krishnamurti: Então, porque em nós mesmos não somos permanentes, porque nada há em nós que seja enriquecedor, porque somos interiormente pobres, infelizes, por isso buscamos preenchimento, tentamos acumular, ser alguma coisa. Isso é a raiz da questão, não é mesmo? Será que percebemos isso?

Auditório: Sim.

Krishnamurti: Prossigamos a partir daí. Estamos confusos, estamos sozinhos, somos interiormente insuficientes – isso é um fato. Qualquer ação que evite esse fato é uma fuga, não é mesmo? E uma das coisas mais difíceis é não fugir. Porque, olhar para o fato, considerá-lo, ficar cônscio dele, implica não condenar o fato, não o comparar, não o avaliar. Então, será que podemos, não teoricamente, mas de fato, experimentar a coisa da qual estamos falando? Porque então veremos que é possível ser totalmente livre desse senso de insuficiência, dessa causa-raiz do sofrimento.

Pergunta: O senhor quer dizer que devemos ficar satisfeitos com o que somos?

Krishnamurti: Não, senhor – isso só leva à estagnação, à imobilidade, à morte. Estou mostrando que qualquer interpretação do fato está baseada ou na satisfação ou na insatisfação.

Então, posso olhar para o fato da insuficiência interna sem comparação, sem julgamento? Posso olhar para isso sem temor? O medo do fato não estaria me obrigando a fazer todas essas coisas, forçando-me a perseguir o ideal? Podemos compreender agora que é o medo que nos leva a comparar? – medo de algo que não conhecemos. Já demos a isso o nome de insuficiência, de solidão, de sofrimento, de confusão; e, tendo-lhe dado um nome, desse modo a condenamos na fuga ao fato. Quando não condenamos, não julgamos, não avaliamos nem comparamos, então ficamos só com o medo. Até aqui, está claro?

Auditório: Sim. Sim.

Krishnamurti: Medo de quê? Você entende a pergunta? Tenho medo de um estado que chamo de ‘insuficiência’. Não conheço esse estado; nunca realmente olhei para ele, mas tenho medo dele. Tendo medo dele, fujo para longe dele. Mas agora não estou fugindo mediante comparação ou ideais, pois vejo a falsidade da fuga. Então, fico só com o medo de algo sobre o que nada sei. Não é isso mesmo?

Auditório: Sim.

Krishnamurti: Se vocês estão acompanhando realmente a explanação – não verbalmente, não intelectualmente – verão por si mesmos esse processo se revelando e as profundezas a que se pode ir. Então, já não tenho ideais; eles já não têm significado. Já não luto para alcançar. O fato é que estou com medo de algo sobre o que nada sei, mas, se eu parar de fugir desse algo, então fico com o fato e com o medo. Se eu continuar observando o medo, se eu perguntar “Como me livro do medo?”, então isso seria outra fuga ao fato, não seria? Portanto, estou agora preocupado com a compreensão do que é, e percebo que dar nome a uma coisa – como “vazio”, “solidão”, “insuficiência” – é o que realmente cria o medo. Rotular a coisa causou a reação de medo àquele rótulo.

Então, será que a mente pode ficar cônscia da coisa sem condenação, sem julgamento, sem fuga, sem lhe dar um nome? Isso é muitíssimo difícil, pois a maioria de nós está tão condicionada a perseguir o ideal, que isso nos impede de olhar para o fato real. Não somos capazes de olhar para o fato quando há comparação, quando a mente lhe dá um rótulo, um nome. Mas, quando não se dá nome ao fato, quando não há fuga ao fato por meio dos ideais, da comparação, do julgamento, então o que é que resta? Há alguma coisa que possa ser chamada de insuficiência? Existe aquela compulsão ao preenchimento que gera frustração?

Assim, começamos a descobrir como a mente tem sido incapaz de olhar para qualquer coisa sem todo esse processo confuso, contraditório. Só quando a mente é capaz de abandonar tudo isso – não mediante qualquer esforço, mas porque vê a verdade de tudo isso – só então há cessação da inveja, a completa cessação. Tal mente já não está sujeita à sociedade, a nenhuma cultura – pois toda a nossa cultura se fundamenta na inveja. Então, descobriremos que a mente já não busca, pois nada mais resta para buscar. Então tal mente está realmente tranquila.

Ater-se a repetir o que foi dito não tem significado nenhum. Mas, realmente experimentar isso mediante autoconhecimento e não para acumular o que foi experimentado – pois a acumulação distorce todas as experiências futuras – ficar cônscio de tudo isso resulta na verdade, naquela extraordinária liberdade que vem por meio da completa solidão. A mente que estiver completamente só, incontaminada, não fugindo, é capaz de receber aquilo que é verdadeiro.

18 de junho de 1955