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18/06/1934 – T

 

http://www.jkrishnamurti.org/krishnamurti-teachings/view-text.php?tid=81&chid=4441&w=

Terceira palestra em The Oak Grove, Ojai, Califórnia.

Krishnamurti: Nesta manhã, irei apenas responder a perguntas.

Pergunta: Qual é a diferença entre autodisciplina e supressão dos desejos, sentimentos etc.?

Krishnamurti: Não penso que haja muita diferença entre as duas, porque ambas negam a inteligência. A supressão é a forma grosseira da autodisciplina, que também é repressão; ou seja, tanto a supressão como a autodisciplina são meros ajustamentos ao ambiente. Uma é a forma grosseira de ajustamento, que é a supressão, e a outra, a autodisciplina, é a forma mais sutil. Ambas têm base no medo: a supressão, num medo óbvio; a outra, a autodisciplina, no medo da perda, ou no medo que se expressa na aquisição.

A autodisciplina – o que vocês chamam de autodisciplina – é meramente um ajustamento a um ambiente que não entendemos de maneira completa; por isso, nesse ajustamento, deve haver negação da inteligência. Por que alguém precisaria disciplinar a si mesmo? Por que uma pessoa se disciplina, força a si mesma a se moldar conforme um padrão particular? Por que tantas pessoas pertencem a essas numerosas escolas de disciplina, que se supõe conduzirem à espiritualidade, a uma compreensão maior, a um desabrochar mais amplo do pensamento? Vocês notarão que quanto mais disciplinam e treinam as suas mentes, maiores se tornam as suas limitações. Por favor, precisamos pensar sobre isso cuidadosamente e com uma delicada percepção, evitando nos confundirmos com a introdução de outras questões. Emprego aqui a palavra “autodisciplina” com o mesmo sentido que lhe foi conferido na pergunta, ou seja, disciplinar o íntimo de acordo com certo padrão, preconcebido e preestabelecido, que vem a ser o desejo de atingir, de adquirir. No entanto, para mim, o próprio processo de disciplina, essa contínua distorção da mente segundo um determinado padrão preestabelecido, eventualmente acabará mutilando a mente. A mente que é inteligente de fato está livre da autodisciplina, pois a inteligência nasce do questionamento do ambiente e da descoberta do seu verdadeiro significado. Nessa descoberta há um ajustamento genuíno, não o ajustamento a um certo padrão ou condição, mas o ajustamento que se dá por meio da compreensão, e que, portanto, encontra-se liberto de todas as condições particulares.

Considerem um homem primitivo; o que ele faz? Nele não se verifica disciplina, nem controle, nem supressão. Ele faz o que deseja, esse homem primitivo. O homem inteligente também faz o que deseja, mas com inteligência. A inteligência não nasce da autodisciplina ou da supressão. No primeiro caso, tudo se resume à perseguição do desejo: o homem primitivo perseguindo o objeto que deseja. No segundo caso, o homem inteligente vê o significado do desejo e vê o conflito. O homem primitivo não enxerga isso, ele persegue tudo que deseja e cria sofrimento e dor. Portanto, para mim, autodisciplina e supressão são semelhantes, elas negam a inteligência.

Por favor, averiguem o que eu falei sobre a disciplina, a autodisciplina. Não o rejeitem, não digam que vocês devem praticar a autodisciplina porque, do contrário, haverá caos no mundo – como se já não houvesse caos. E repetindo, não aceitem meramente o que digo, concordando que é assim. Eu estou lhes falando de algo que experimentei e que descobri ser verdadeiro. Penso que, psicologicamente, isso é verdadeiro, pois a autodisciplina implica uma mente que se acorrentou a um pensamento, ideal ou crença particular, uma mente sujeitada a certas condições; e, assim como um animal amarrado a um poste só pode se deslocar no limite da corda que o prende, a mente que se amarrou a uma crença, que se perverteu através da autodisciplina, desenvolve-se apenas dentro do limite estabelecido por essas condições. Por conseguinte, uma mente assim não é uma mente de fato, ela é incapaz de pensar. Pode ser capaz de ajustamento, de avançar até onde permitir a corda que a prende ao poste; mas essa mente, esse coração, não pode realmente pensar e sentir. A mente e o coração encontram-se disciplinados, mutilados, pervertidos, por terem negado o raciocínio, negado a afeição. Assim, vocês devem observar, tornar-se cônscios de como funcionam o seu próprio pensamento e os seus próprios sentimentos, sem desejar conduzi-los em qualquer direção específica. Primeiro de tudo, antes de orientá-los, descubram como funcionam. Antes de tentarem mudar e alterar o pensamento e o sentimento, verifiquem seu modo de funcionar, e verão que eles se ajustam continuamente aos limites determinados por aquele ponto central fixado pelo desejo e pelo preenchimento do desejo. Na atenção não há disciplina.

Deixem-me dar um exemplo. Suponham que vocês tenham uma mentalidade classista, hierarquista, esnobe. Vocês não sabem que são esnobes, mas desejam averiguar isso; como o farão? Tornando-se conscientes de seu pensamento e de suas emoções. Então, o que acontece? Suponham que vocês descubram que são esnobes. Nesse caso, a própria descoberta cria uma perturbação, um conflito, e esse mesmo conflito dissolve o esnobismo. Ao passo que, se vocês meramente disciplinam a mente para não ser esnobe, vocês desenvolvem uma diferente característica, que consiste no oposto do esnobismo, e que, por ser deliberada, falsa, é igualmente perniciosa.

Assim, pelo fato de termos estabelecido vários padrões, vários objetivos, várias maneiras de obtermos auxílio, e porque continuamente, de modo consciente ou inconsciente, estamos perseguindo tudo isso, disciplinamos nossas mentes e nossos corações para esse fim, e como resultado deve haver controle, perversão. Ao passo que, se vocês começarem a questionar as condições que criam o conflito, e dessa forma despertarem a inteligência, então essa própria inteligência se fará suprema e se manterá em contínuo movimento, de modo que nunca haverá um ponto estático capaz de criar conflito.

Pergunta: Admitindo-se que o “Eu” é formado por reações ao ambiente, através de que método podemos escapar dessas limitações? Ou, como devemos proceder ao processo de reorientação para evitarmos o conflito entre essas duas coisas falsas?

Krishnamurti: Em primeiro lugar, vocês querem saber o método para escapar das limitações. Por quê? Por que perguntam? Por que vocês sempre pedem um método, um sistema? O que isso indica, esse desejo de um método? Toda demanda de um método indica o desejo de fugir. Vocês querem que eu estabeleça um sistema, de modo que vocês possam imitar esse sistema. Em outras palavras, vocês desejam um sistema inventado para que vocês se sobreponham às condições que criam conflito, de modo que consigam escapar de todo o conflito. Em outras palavras, vocês buscam meramente se ajustar a um padrão, tendo em vista fugir do conflito e da realidade em que vivem. Esse é o desejo por trás da necessidade de um método, de um sistema. Vocês sabem, a vida não é pelmanismo*. O desejo de um método indica essencialmente o desejo de fugir.

* N. do T.: Pelmanismo é um método de desenvolvimento da capacidade mental que foi bastante popular na primeira metade do século XX.

Sabem, vocês perderam todo o senso de viver de maneira normal, simples, direta. Para recuperarem essa normalidade, essa simplicidade, essa integridade, vocês não podem seguir métodos, vocês não podem meramente se tornar máquinas automáticas. Mas, receio que a maioria de nós está buscando métodos, pois pensamos que, através deles, obteremos realização, estabilidade, constância. Para mim, métodos conduzem à lenta estagnação e decadência, e nada têm a ver com a verdadeira espiritualidade, que é, afinal de contas, o produto definitivo da inteligência.

Pergunta: Você fala da necessidade de revolução drástica na vida do indivíduo. Se ele não quiser revolucionar sua realidade exterior por causa do sofrimento que isso causaria à sua família e aos seus amigos, poderá a revolução interior conduzí-lo à libertação de todos os conflitos?

Krishnamurti: Antes de tudo, senhores, não podem sentir também que uma revolução drástica na vida do indivíduo é necessária? Ou vocês estão meramente satisfeitos com as coisas do jeito que são, com suas ideias de progresso, evolução, e seu desejo de realização, seus anseios e prazeres flutuantes? Sabem, no momento em que vocês começam a pensar, realmente começam a sentir, devem ter esse desejo ardente de uma mudança drástica, revolução drástica, completa reorientação do pensamento. Mas, se vocês sentem que isso é necessário, então nem família nem amigos podem ficar no caminho. Então não há nem uma revolução exterior nem uma revolução interior; há apenas revolução, mudança. Mas no momento em que vocês começam a limitá-la, dizendo: “Não devo magoar minha família, meus amigos, meu padre, os capitalistas ou os governantes que me exploram”, vocês deixam de ver a necessidade de mudança radical, vocês meramente buscam uma mudança exterior. Nisso há apenas letargia, que contribui para a falsidade do mundo exterior e perpetua o conflito.

Penso que apresentamos uma desculpa realmente insincera de que não devemos causar dano às nossas famílias e aos nossos amigos. Vocês sabem, quando vocês querem fazer algo vital, vocês o fazem, independentemente de sua família ou de seus amigos. Não é? Nesse caso, vocês não consideram que os prejudicam. Isso está além de seu controle; vocês sentem tão intensamente, vocês pensam tão completamente que isso os carrega para além das limitações dos círculos familiares, com suas imposições íntimas. Mas, vocês somente começam a considerar a família, os amigos, os ideais, as crenças, as tradições, a ordem estabelecida, quando insistem em se aferrar a uma segurança particular, quando não há riqueza interior, mas apenas a dependência de estímulos externos para a riqueza interior. Portanto, se existir essa plena consciência do sofrimento, produzida pelo conflito, então vocês não estão mais presos pelos laços de qualquer ortodoxia, amizade ou família. Vocês desejam descobrir a causa desse sofrimento, vocês querem descobrir o significado do ambiente que cria esse conflito; então, nisso não há personalidade, nenhuma limitada ideia do “Eu”. Mas é apenas quando vocês se agarram a essa limitada ideia que vocês se perguntam até onde devem avançar e até onde não devem avançar.

Certamente, a verdade ou esse deus da compreensão não podem ser encontrados através do apego à família, à tradição ou ao hábito. Só podem ser descobertos quando vocês se encontram completamente nus, despidos de suas expectativas, esperanças, garantias; pois nessa direta simplicidade existe a riqueza da vida.

Pergunta: Pode explicar por que o ambiente, desde o início, tendeu a ser falso, ao invés de verdadeiro? Qual é a origem de todos esses problemas e confusões?

Krishnamurti: Quem vocês pensam que criou o ambiente? Algum Deus misterioso? Por favor, apenas um minuto; quem criou o ambiente, as estruturas social, econômica, religiosa? Nós mesmos. Cada um de nós contribuiu, individualmente, até que ela se tornou coletiva, e o indivíduo que ajudou a criar o coletivo agora se perdeu no coletivo, pois essa esfera coletiva se tornou o seu molde, o seu ambiente. Devido ao desejo de segurança – econômica, moral e espiritual –, vocês criaram uma realidade capitalista, na qual há nacionalidade, diferença de classes e exploração. Nós criamos isso, vocês e eu. Essas coisas não vieram a existir por milagre. Vocês criarão repetidamente um sistema capitalista e aquisitivo, de um tipo diferente, com nuances diferentes, com uma coloração diferente, enquanto estiverem em busca de segurança. Vocês poderão abolir o padrão atual, mas, enquanto houver possessividade, vocês criarão outro Estado capitalista, com uma nova fraseologia, um novo jargão.

E o mesmo se aplica às religiões, com todas as suas cerimônias absurdas, explorações, medo. Quem as criou? Vocês e eu. Através dos séculos, nós criamos essas coisas e, devido ao medo, entregamo-nos a elas. Foi o indivíduo que criou um ambiente que é falso em todo lugar. E ele tornou-se um escravo, e essa falsa condição resultou numa falsa busca pela segurança daquela autoconsciência que vocês chamam de “Eu”, isto é, numa constante batalha entre o “Eu” e o falso ambiente exterior.

Vocês desejam saber quem criou o ambiente e toda esta assustadora confusão e seus problemas, pois querem um redentor que os liberte desta realidade e os abrigue em um novo céu. Aferrando-se a todos os seus preconceitos, esperanças, medos e preferências particulares, vocês criaram individualmente este mundo, e, portanto, devem individualmente romper com ele e não esperar por um sistema que o elimine. Um sistema provavelmente virá e o substituirá, e então vocês meramente se tornarão escravos desse sistema. O sistema comunista pode vir, e então provavelmente vocês usarão palavras novas, porém com as mesmas reações, manifestando-se apenas de uma maneira diferente, com um ritmo diferente.

É por isso que afirmei no outro dia que, se o ambiente está levando vocês numa certa direção, esta já deixou de ser correta. É apenas quando existe ação nascida da compreensão do ambiente que há retidão.

Então, individualmente, devemos nos tornar cônscios. Eu lhes asseguro que, a partir daí, cada um de vocês criará algo imenso, não uma sociedade que meramente se agarra a um ideal, e que, em consequência disso, tende a decair, mas uma sociedade que está constantemente em movimento, nunca chegando a um ápice para depois morrer. Os indivíduos estabelecem um objetivo, esforçam-se por sua realização, e, depois de obtê-la, entram em colapso. Eles tentam, o tempo inteiro, atingir certo objetivo, e depois permanecem naquele estágio que alcançaram. Assim como o indivíduo, o Estado – o Estado tenta o tempo todo alcançar um ideal, um objetivo. Todavia, a meu ver o indivíduo deve estar em constante movimento, deve sempre estar em transformação, e não buscando um resultado definitivo, não buscando um objetivo. Dessa maneira, a autoexpressão, que é a sociedade, sempre estará em constante movimento.

Pergunta: Você considera que o karma é a relação entre o falso mundo exterior e o falso “Eu”?

Krishnamurti: Vocês sabem, karma é a palavra sânscrita que significa agir, fazer, trabalhar, e tudo isso implica causa e efeito. Mas, karma é uma cadeia, a reação nascida do ambiente, que a mente não entendeu. Como tentei explicar ontem, quando não entendemos uma determinada condição, a mente naturalmente fica sobrecarregada, carente de compreensão; e, com essa carência de compreensão, funcionamos e agimos, e a partir daí criamos novos fardos, maiores limitações.

Dessa maneira, todos precisamos descobrir o que produz essa falta de entendimento, o que impede o indivíduo de realizar a inteira significação do mundo, seja o do passado ou o do presente. E para descobrir essa significação, a mente deve realmente estar livre do preconceito. É uma das coisas mais difíceis é ser realmente livre de uma predisposição, de um temperamento, de uma idiossincrasia; e abordar o mundo de maneira renovadamente aberta, de maneira direta, requer um elevado grau de percepção. A maioria das mentes são influenciadas pela vaidade, pelo desejo de ser “alguém” para impressionar os outros, pelo desejo de alcançar a verdade, ou de escapar das circunstâncias exteriores, ou de expandir a própria consciência – o que apenas é definido em termos diferentes, de natureza espiritual –, ou são influenciadas ainda pelos seus preconceitos nacionalistas. Todos esses desejos impedem que a mente perceba diretamente o inteiro valor do ambiente; e, uma vez que a maioria das mentes são preconceituosas, a primeira coisa que temos que fazer é nos tornarmos cônscios de nossas próprias limitações. E quando vocês começam a estar cônscios, não há mais conflito nessa consciência. Quando vocês sabem que são realmente, brutalmente orgulhosos ou presunçosos, no próprio ato de se conscientizarem da presunção, ela começa a se dissipar, porque vocês percebem que é absurda; mas, se vocês meramente começam a encobri-la, isso produz mais doenças, mais falsas reações.

Assim, para viver cada momento sem o fardo do passado ou do presente, sem a debilitante memória criada pela falta de compreensão, a mente deve sempre abordar as coisas de maneira nova. É fatal abordar a vida com o fardo da certeza, com a presunção do conhecimento, porque, no final das contas, o conhecimento é meramente uma coisa do passado. Portanto, quando vocês encararem a vida com esse frescor, vocês saberão o que é viver sem conflito, sem esse contínuo e desgastante esforço. A partir daí, vocês avançarão por longas distâncias nos oceanos da vida.

18 de junho de 1934.