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04/06/1944 – T

Quarta Palestra em Oak Grove

Nas três últimas palestras tentei explicar o pensar correto, que vem do autoconhecimento, não é adquirido através de outra pessoa, conquanto grande, nem através de um livro, mas antes através da experiência da autodescoberta, através desta descoberta que é criativa e libertadora. Tentei explicar que como nossa vida é uma série de disputas e conflitos, a menos que compreendamos o empenho correto, estaremos criando não clareza e paz, mas mais conflito e mais dor; que sem autoconhecimento, fazer uma escolha entre os opostos deve levar, inevitavelmente, a mais ignorância e sofrimento.

Não sei quão claramente eu expliquei este problema de conflito entre opostos; pois até compreendermos profundamente suas causas e efeitos, nosso empenho, conquanto sério e vigoroso, não vai nos libertar de nossa confusão e miséria. Por mais que possamos formular ou tentar compreender aquilo que chamamos Deus ou verdade, não podemos compreender o desconhecido até a própria mente se tornar tão vasta, tão imensurável como a coisa que estamos tentando sentir, experimentar. Para experimentar o imensurável, o desconhecido, a mente deve ir além e acima dela mesma.

O pensamento-sentimento é limitado por sua própria causa, o anseio de se tornar, que está ligado ao tempo. O anseio, pela identificação com a memória, cria o ego, o ‘eu’ e o ‘meu’. É o ator assumindo diferentes papéis para atender a diferentes ocasiões, mas, internamente, é sempre o mesmo. Até este anseio, causa de nossa ignorância e sofrimento, ser compreendido e dissolvido, o conflito da dualidade continuará e o esforço para se desligar dele vai nos mergulhar mais nele. Este anseio se expressa através da sensualidade, da imortalidade pessoal, da autoridade, mistério, milagre. Enquanto a mente for o instrumento do ego, do anseio, haverá dualidade e conflito. Tal mente não pode compreender o imensurável.

O ego, a consciência do ‘eu’ e do ‘meu’, é construído através do anseio, por uma série de pensamentos e sentimentos não só no passado, mas pela influência desse passado no presente. Nós somos o resultado do passado; nossos seres se baseiam nele. Os muitos níveis interligados de nossa consciência são o resultado do passado. Esse passado não é para ser estudado e compreendido através do presente vivo; através dos dados do presente, o passado é encoberto. Estudando o ego e sua causa, anseio, começaremos a compreender o caminho da ignorância e sofrimento. Simplesmente negar o anseio, simplesmente se opor a suas muitas expressões, não é transcendê-lo, mas prosseguir com ele. Negar o mundanismo é ainda ser mundano; mas se você compreender os caminhos do anseio, então a tirania dos opostos, possessão e não-possessão, mérito e demérito, cessa. Se investigarmos o anseio profundamente, meditando sobre ele, se conscientizando de sua mais ampla e profunda significação e, assim, transcendendo-o, despertaremos para uma nova, diferente faculdade que não é geradora de anseio nem do conflito dos opostos. Por meio de constante autoconscientização surge uma observação sem identificação, o estudo do ego sem julgamento. Através dessa conscientização os muitos níveis da autoconsciência são revelados e compreendidos. Autoconhecimento traz pensar correto que libertará o pensamento-sentimento do anseio e de seus muitos sofrimentos conflituosos.

Interrogante: A compreensão de si mesmo leva a uma mudança do problema e da ideia? Pode-se compreender como o nacionalismo surge: educação, opressão, vaidade, etc., mas o nacionalista permanece ainda um nacionalista. A vontade de mudar, de compreender o problema, não traz a real dissipação do problema. Então qual é o próximo passo depois de conhecer as causas nesse processo de pensamento?

Krishnamurti: Identificar-se com uma raça particular, com um país particular, ou com certas ideologias rende segurança, satisfação, e incensa a importância de si mesmo. Essa adoração da parte, em lugar do todo, cultiva antagonismo, conflito e confusão. Se você pensar nisso, perceber isso clara e inteligentemente, não examinando simples ideias, mas sua reação a elas, então, na compreensão da total implicação do nacionalismo, ordem e clareza surgirão nesta fina camada de consciência com a qual funcionamos todo dia. É importante fazer isso para nos conscientizarmos da completa significação do nacionalismo – como ele divide a humanidade que é uma, como ele gera antagonismo e opressão, como ele encoraja o domínio da propriedade e da família, como ele condiciona o pensamento-sentimento por meio das organizações, como ele cultiva barreiras econômicas e pobreza, guerras, misérias e assim por diante.

Compreendendo a profunda implicação do nacionalismo, ordem e clareza são trazidas para a mente consciente e, nessa clareza, as respostas armazenadas, ocultas, se projetam. Pelo estudo dessas projeções diligentemente, inteligentemente, toda a consciência é libertada da doença do nacionalismo. Assim, você não se torna internacionalista, o que ainda mantém o separatismo e a adoração da parte; mas existe uma consciência de unidade e não-nacionalidade, uma liberdade de rótulos e nomes, de preconceito racial e de classe.

O mesmo processo pode ser aplicado a todos os nossos problemas – pensar-sentir o problema tão ampla e livremente quanto possível, trazendo, assim, ordem e clareza para a mente consciente que pode, então, responder com compreensão às projeções das injunções e impulsos ocultos, interiores – resolvendo totalmente o problema. Até os muitos níveis da memória serem descobertos, expostos e suas respostas totalmente compreendidas, o problema continuará; mas essa descoberta, essa investigação, não é possível se a mente consciente não estiver esclarecida sobre o problema. Não ficar completamente identificado com o problema é nossa dificuldade, pois a identificação impede o fluxo de pensamento-sentimento; identificação implica aceitação ou negação, julgamento ou comparação, o que distorce nossa compreensão. O pensamento-sentimento se libertar de qualquer problema, de qualquer obstáculo, não é trabalho para um momento. Liberdade demanda conscientização externa e interna, o exterior pronto para receber as respostas internas; essa constante conscientização traz profundo e amplo autoconhecimento. No autoconhecimento está a liberdade do pensar correto, e só no autoconhecimento os problemas, dependências, são compreendidos e dissolvidos.

Interrogante: Eu sou uma pessoa muito ativa fisicamente. Chegará um dia em que não serei. Como vou ocupar meu tempo então?

Krishnamurti: A maioria de nós está presa a valores sensoriais, e o mundo a nossa volta é organizado para reforçá-los e mantê-los. Nós nos tornamos mais e mais envolvidos neles e envelhecemos descuidadamente, desgastados pela atividade exterior, mas interiormente inativos e pobres. Logo a atividade exterior, ruidosa, chega a um fim inevitável, e nos tornamos conscientes da solidão, da pobreza de ser. A fim de encarar essa dor e medo, alguns continuam incessantemente ativos socialmente, na religião organizada, politicamente, e no mundo dos negócios, dando justificativas para sua atividade e alvoroço ruidoso. Para aqueles que não podem prosseguir com a atividade exterior, a questão de o que fazer quando a velhice surge. Eles não podem, de repente, se tornarem ativos internamente, eles não sabem o que isso significa, toda a vida deles foi contra isso. Como se tornarão internamente conscientes?

Seria sábio se depois de certa idade, digamos talvez 40 ou 45 anos, ou mais jovem ainda, você se retirasse do mundo, antes que fosse muito velho. O que aconteceria se você se retirasse não simplesmente para aproveitar o fruto de ganhos sensoriais, mas se retirasse a fim de descobrir a si mesmo, a fim de pensar-sentir profundamente, meditar, descobrir a realidade? Talvez você pudesse salvar a humanidade do caminho sensorial, mundano, que ela vem seguindo, com toda a sua brutalidade, ilusão e sofrimento. Assim, poderia haver um grupo de pessoas, dissociadas do mundanismo, de suas identificações e demandas, capaz de guiá-la, ensiná-la. Estando livre do mundanismo, elas não teriam autoridade, nem importância, e não seriam levadas para a estupidez e as calamidades. Pois um homem que não está livre da autoridade, da posição, não é capaz de guiar, de ensinar ao outro. Um homem que vive na autoridade se identifica com sua posição, com sua importância, com seu trabalho e, assim, está na escravidão. Para compreender a liberdade da verdade deve haver liberdade para experimentar. Se tal grupo surgisse, eles podiam produzir um novo mundo, uma nova cultura.

É triste para aquele que vê a velhice chegando começar a questionar sua vida vazia; ao menos ele começou a despertar. Um casal veio me ver outro dia. Eles trabalhavam numa fábrica ganhando muito dinheiro. Eram velhos. Ao longo da conversa, naturalmente, surgiu a sugestão de que se aposentassem, considerando sua idade, para pensar, viver nova vida. Eles olharam surpresos e disseram “Como assim?”

Você pode rir, mas receio que a maioria de nós está na mesma situação. Para a maioria de nós, pensar, investigar é ao longo da trilha determinada de um dogma particular ou crença, e seguir essa trilha é considerado religioso, inteligente. O pensar correto só começa com autoconhecimento e não no conhecimento de ideias e fatos, o que é apenas extensão da ignorância.  Mas se você, seja velho ou jovem, começar a compreender a si mesmo, descobrirá grandes e imperecíveis tesouros. Mas descobrir exige persistente conscientização, ajustamento e aplicação – consciência de cada pensamento-sentimento – e, a partir daí, o tesouro da vida é descoberto.

Interrogante: Como podemos compreender a nós mesmos verdadeiramente, nossas infinitas riquezas, sem desenvolver uma completa percepção primeiro? De outro modo, com nossa percepção comparativa de pensamento, só conseguimos um compreensão parcial deste infinito fluxo de causa em cuja ordem nos movemos e temos nosso verdadeiro ser consciente.

Krishnamurti: Como você pode compreender o todo quando está adorando a parte! Sendo mesquinho, parcial, limitado, como você pode compreender aquilo que é sem limite, infinito? O pequeno não pode captar o grande, mas o pequeno pode cessar de existir. Compreendendo o que contribui para a limitação, para a parcialidade, e transcendendo isso, você será capaz então de compreender o todo, o ilimitado. A partir do conhecido o desconhecido é percebido, mas especular sobre o desconhecido é, simplesmente, negar o limitado, o trivial; e, assim, toda especulação se torna um obstáculo para a compreensão da realidade.

Comece a compreender a si mesmo e nisso haverá a descoberta de imensuráveis riquezas. Comece com o conhecido, com o trivial, o limitado, o confuso, o pequeno que está ligado ao medo, à crença, à luxúria, à má vontade. Ele é mesquinho, parcial, porque é produto da ignorância. Como pode tal mente compreender o todo? Ela não pode. Se o pensamento-sentimento se liberta do anseio e, por isso, da ignorância e do sofrimento, só então existe a possibilidade de compreender o todo. Como pode haver a compreensão daquilo que não tem causa quando nosso pensamento-sentimento é um resultado, quando está ligado ao tempo? Isso parece tão óbvio que não requer muita explicação, mas, contudo, muitos estão presos na ilusão de que, primeiro, temos que ter a visão, a percepção do todo, uma hipótese de trabalho como início, antes que haja a compreensão da parte. Para ter uma percepção desta completude, a realização desta infinita realidade, o singularista, a mente limitada deve romper as barreiras que a confinam. A partir de uma pequena, estreita abertura os amplos céus não são percebidos. Tentamos perceber o todo através da pequena abertura de nosso pensamento-sentimento, e o que vemos deve ser, inevitavelmente, pequeno, parcial, incompleto. Dizemos que queremos compreender o todo, contudo nos fixamos ao mesquinho, ao ‘eu’ e ao ‘meu’. Através da autoconsciência, que traz autoconhecimento, o pensar correto é nutrido, o que nos libertará de nossa trivialidade e sofrimento. Quando a mente pára de tagarelar, quando ela não está cumprindo nenhum papel, quando não está sôfrega ou se tornando, quando está absolutamente imóvel, nesse vazio criativo está o todo, o não criado.

Interrogante: Você acredita que existe mal no mundo?

Krishnamurti: Por que você me faz esta pergunta? Você não tem consciência dele? Suas ações não são óbvias, seu sofrimento não é esmagador? Quem o criou a não ser cada um de nós? Quem é responsável por ele a não ser cada um de nós? Como criamos o bem, conquanto pequeno, também criamos o mal, conquanto vasto. Bem e mal são partes de nós e são, também, independentes de nós. Quando pensamos-sentimos estreitamente, invejosamente, com ganância e ódio, estamos acrescentando ao mal que se volta e nos lacera. Esse problema de bem e mal, esse problema conflituoso, está sempre conosco conforme o criamos. Isso se tornou parte de nós, esse querer e não querer, amar e odiar, ansiar e renunciar. Estamos, continuamente, criando essa dualidade em que o pensamento-sentimento está preso. O pensamento-sentimento só pode ir além e acima do bem e seu oposto quando compreender sua causa – anseio. Na compreensão de mérito e demérito está a liberdade dos dois. Os opostos não podem ser fundidos e tem que ser transcendidos pela dissolução do anseio. Cada oposto deve ser pensado, sentido, tão extensiva e profundamente quanto possível, através de todas as camadas da consciência; através desse pensar, sentir, uma nova compreensão é despertada que não é produto do anseio ou do tempo.

Existe o mal no mundo ao qual estamos contribuindo como contribuímos para o bem. O homem parece se unir mais no ódio do que no bem. Um homem sábio percebe a causa de mal e bem, e pela compreensão liberta o pensamento-sentimento deles.

Interrogante: No último domingo, eu entendi, a partir do que você disse, que não tiramos tempo de nossos empregos, família, atividades, para estudar a nós mesmos. Isso parece uma contradição à sua primeira afirmação de que a pessoa pode estar consciente em tudo que faz.

Krishnamurti: Certamente você começa estando cônscio em tudo que você faz. Mas o que acontece quando você está consciente assim? Se você vai ao encalço dessa conscientização mais e mais, acaba ficando sozinho, mas não isolado. Nenhum objeto está em isolamento; existir é estar em relação, seja sozinho ou com muitos. Mas quando você começa a se conscientizar em tudo que faz, está começando a estudar a si mesmo, está começando a ficar consciente de seus pensamentos-sentimentos interiores, privados, motivos, medos e assim por diante. Quanto mais há autoconsciência, mais recolhido em si você se torna; você se torna mais silencioso, mais puramente consciente. Estamos muito ocupados com a família, emprego, amigos, questões sociais e estamos pouco conscientes; a velhice e a morte se aproximam e nossa vida está vazia. Se você estiver consciente em sua relação cotidiana e atividade, começará a desvincular pensamento-sentimento da causa da ignorância e do sofrimento. Conscientizando-se do interior bem como das ações e respostas superficiais, as distrações cessarão naturalmente, e uma vida simples vai, inevitavelmente, se seguir.

Interrogante: Você acha que retornará aos Mestres?

Krishnamurti: O interrogante, acreditando e confiando nos Mestres, quer me levar de volta a seu rebanho; talvez ele considere que tendo aceitado uma vez sua crença, eu retornarei a ela.

Vamos examinar essa crença nos Mestres inteligentemente, sem nos identificarmos com ela. Para alguns será difícil já que estão grandemente ocupados com ela, mas vamos tentar pensar-sentir tão abertamente e livremente quanto possível em relação a isso. Por que você precisa de Mestres? Esses supostos seres vivos com os quais você não está diretamente em contato? Você, provavelmente, dirá que eles atuam como sinalizadores da realidade. Se eles são sinalizadores, por que você pára e os adora? Por que você aceita os sinalizadores, os mediadores, os mensageiros, as autoridades intermediárias? E por que você forma organizações, grupos, em torno deles? Se você está em busca da verdade, por que todo este barulho em torno deles, por que as organizações exclusivas e conclaves secretos? Não é porque é mais fácil e mais agradável demorar-se, adorar numa ermida, encontrar conforto nisso, mais do que seguir uma longa jornada de investigação e descoberta? Ninguém pode levá-lo à verdade, nem os Mestres nem os deuses nem seus mensageiros. Você sozinho tem que trabalhar, investigar, e descobrir.

Um professor com quem você está em contato diretamente é uma coisa, embora isso tenha seus próprios perigos; mas estar supostamente em contato com aqueles com quem você não está diretamente em contato, ou em contato através de seus supostos representantes ou mensageiros, é convocar a superstição, a opressão, e outros graves obstáculos. A adoração da autoridade é a própria negação da verdade. A autoridade cega, e o florescimento da inteligência é destruído; a arrogância e a estupidez aumentam, a intolerância e a divisão crescem e se multiplicam.

Fundamentalmente, o que podem os Mestres lhe dizer? Conheça a si mesmo, cesse de odiar, seja compassivo, busque a realidade. Qualquer outro ensinamento seria de pouca importância. Ninguém pode lhe fornecer uma técnica, uma fórmula definida para conhecer a você mesmo. Se você tivesse uma e a seguisse, não conheceria a si mesmo; conheceria o resultado da fórmula, mas não a você mesmo. Para conhecer, você terá que investigar e descobrir dentro de si mesmo. O resultado de uma técnica, de uma prática, de um hábito é não criativo, mecânico. Nenhum outro pode ajudá-lo a compreender a si mesmo e, sem compreender a si, não há compreensão da realidade. Essa busca pelos Mestres é o estímulo para o mundanismo. Um valor super-sensato pertence ainda a este mundo e, por isso, a causa de ignorância e sofrimento.

Então se pode perguntar “O que você faz, você não é um sinalizador?” Se eu sou e você se reúne para colocar flores, construir uma ermida e toda a estupidez que vem com isso, então isso é completamente insensato e indigno de pessoas adultas. O que estamos tentando fazer é aprender a cultivar o pensar correto – que só chega com o autoconhecimento. Na base do pensar correto está o mais elevado. Este conhecimento ninguém pode lhe dar, mas você mesmo tem que se tornar consciente de todos os seus pensamentos-sentimentos. Pois em você mesmo está o começo e o fim, a vida inteira. O mais elevado é para ser descoberto, não formulado.

Para ler as páginas do passado, você deve conhecer a si mesmo como no presente, pois através do presente, o passado se revela. Com você está a chave que abre a porta da realidade; ninguém pode ofertá-la porque ela é sua. Através de sua própria conscientização, você pode abrir a porta; só através de sua própria consciência de si você pode ler o rico volume do autoconhecimento, pois nele estão as pistas e as aberturas, os obstáculos e os bloqueios que impedem e ainda assim levam ao infinito, ao eterno.

4 de junho de 1944