Inicial

28/04/1946

Quarta Palestra em Oak Grove

Nas últimas três palestras estivemos considerando esta inteligência que se desenvolve através das atividades e hábitos do ego – este desejo que está constantemente acumulando e com o qual o pensamento se identifica como o ‘eu’ e o ‘meu’. Esse hábito acumulativo, identificado, é chamado inteligência. Este hábito-memória encadeado retém o pensamento e, assim, a inteligência fica aprisionada no ego. Como pode essa inteligência, essa mente que é pequena, estreita, cruel, nacionalista, invejosa, compreender o real? Como pode o pensamento, que é o resultado do tempo, da atividade autoprotetora, compreender aquilo que não pertence ao tempo?

Algumas vezes experimentamos um estado de tranquilidade, de extraordinária clareza e alegria, quando a mente está serena e quieta. Esses momentos chegam inesperadamente, sem convite. Tal experiência não é o resultado de pensamento calculado, disciplinado. Ela ocorre quando o pensamento está esquecido de si, quando o pensamento deixou de se tornar, quando a mente não está no conflito dos problemas criados por ela mesma. Então nosso problema não é como tal momento criativo, alegre pode surgir e ser mantido, mas como provocar a cessação do pensamento auto-expansivo, o que não implica auto-imolação, mas a transcendência das atividades do ego. Quando uma máquina está girando muito rápido, como um ventilador com várias pás, as partes separadas não são visíveis, mas parecem uma coisa só. Assim o ego, o ‘eu’, parece ser uma entidade única, mas se sua atividade puder ser diminuída, então perceberemos que não é uma entidade única, mas formada por muitos desejos e buscas separadas e opostas. Esses desejos separados e esperanças, medos e alegrias formam o ego. O ego é um termo para encobrir o anseio em suas diferentes formas. Para compreender o ego deve haver conscientização do anseio em seus múltiplos aspectos. A conscientização passiva, o discernimento sem escolha, revela os caminhos do ego, trazendo liberdade da escravidão. Assim, quando a mente está tranquila e livre de sua própria atividade e tagarelice, há suprema sabedoria.

Assim, nosso problema é como libertar o pensamento de suas experiências acumuladas, memórias. Como pode esse ego cessar de existir? A experiência profunda e verdadeira só acontece quando a atividade desta inteligência cessa. Vemos que a menos que haja uma experiência da verdade, nenhum de nossos problemas pode ser resolvido, seja sociológico, religioso, ou pessoal. O conflito não pode chegar a um fim simplesmente se rearrumando fronteiras ou reorganizando valores econômicos ou impondo uma nova ideologia; ao longo dos séculos tentamos todos esses caminhos, mas o conflito e o sofrimento continuaram. A menos que haja uma conscientização do real, simplesmente podar galhos de nossa atividade de autoexpansão é de pouca utilidade, pois o problema central permanece sem solução. A menos que descubramos a verdade não há saída para nossos sofrimentos e problemas. A solução está na experiência direta da verdade quando a mente está imóvel, na tranquilidade da conscientização, na abertura da receptividade.

Interrogante: Poderia explicar novamente o que você quer dizer?

Krishnamurti: Às vezes temos experiências religiosas, algumas vagas, algumas definidas – experiências de intensa devoção ou alegria, de estar profundamente vulnerável, de fugaz união com todas as coisas – tentamos utilizar essas experiências em nossas dificuldades e sofrimentos. Essas experiências são numerosas, mas nosso pensamento – preso no tempo, no tumulto e dor – tenta usá-las como estímulo para superar nossos conflitos. Então dizemos que Deus, ou a verdade, nos ajudará em nossas dificuldades, mas essas experiências não resolvem, de fato, nosso sofrimento e confusão. Tais momentos de profunda experiência surgem quando o pensamento não está ativo em suas memórias de autoproteção; essas experiências são independentes de nosso esforço, e quando tentamos usá-las como estimulantes para nos fortalecer em nossas lutas, elas só favorecem a expansão do ego e sua Inteligência peculiar. E voltamos a nossa pergunta: “Como pode esta inteligência, tão diligentemente cultivada, cessar?” Ela só pode cessar por meio da conscientização passiva.

Conscientização é de momento a momento, ela não é o efeito cumulativo de memórias autoprotetoras. Conscientização não é determinação nem é ação da vontade. Conscientização é a rendição completa e incondicional ao que é, sem racionalização, sem a divisão do observador e do observado. Como a conscientização é não-acumulativa, não-residual, ela não forma o ego, positivamente ou negativamente. A conscientização está sempre no presente e, assim, não identifica, não repete; nem cria hábito.

Tome, por exemplo, o hábito de fumar e experimente com ele em conscientização. Esteja consciente de fumar, não condene, racionalize ou aceite – simplesmente esteja consciente. Se você estiver consciente assim, há a cessação do hábito; se você estiver consciente assim, não haverá recorrência dele; mas se você não estiver consciente, o hábito persistirá. Essa conscientização não é a determinação para cessar ou ceder.

Esteja consciente; existe uma diferença fundamental entre estar e se tornar. Para se tornar consciente você faz esforço, e esforço implica resistência e tempo e leva ao conflito. Se você estiver consciente no momento, não há esforço, nem continuidade da inteligência autoprotetora. Você está consciente ou não está; o desejo de estar consciente é só a atividade de quem dorme, o sonhador. A conscientização revela o problema completamente, integralmente, sem negação ou aceitação, justificação ou identificação, e é a liberdade que estimula a compreensão. Conscientização é um processo unitário do observador e do observado.

Interrogante: Pode a receptividade aberta, imóvel da mente chegar com a ação da vontade ou desejo?

Krishnamurti: Você pode conseguir aquietar a mente determinadamente, mas qual é o resultado de tal esforço? A morte, não? Você pode conseguir silenciar a mente, mas o pensamento continua pequeno, invejoso, contraditório, não? Pelo esforço, por um ato da vontade, achamos que um estado sem esforço pode ser alcançado e poderemos experimentar o êxtase do real. A experiência de inexplicável alegria ou intensa devoção ou profunda compreensão só chega quando há existência sem esforço.

Interrogante: Não existem dois tipos de inteligência, aquela com que funcionamos diariamente e a outra que é mais elevada, que orienta, controla, e é benéfica?

Krishnamurti: O ego, em nome de sua própria permanência, não se divide no elevado e no baixo, o controlador e o controlado? Essa divisão não surge do desejo da própria expansão continuada de si? Conquanto astuciosamente ele possa se dividir, o ego é ainda resultado do anseio, ele busca ainda diferentes objetivos a fim de preencher a si mesmo. Uma mente pequena não pode formular algo que não seja pequeno também. A mente é essencialmente limitada e o que quer que ela crie faz parte dela mesma. Seus deuses, seus valores, seus objetivos e atividades são estreitos e mensuráveis e, assim, ela não pode compreender o que não faz parte dela – o imensurável.

Interrogante: Pode um pensamento pequeno ir além de si mesmo?

Krishnamurti: Como pode? A ganância é ainda ganância mesmo que seja para alcançar o paraíso. Só quando ele está consciente de sua própria limitação o pensamento limitado pode cessar. O pensamento limitado não pode se tornar livre; quando a limitação cessa, há liberdade. Se você experimentar com a conscientização, descobrirá a verdade disso.

É a mente pequena que cria problemas para si, e pela conscientização da causa dos problemas, o ego, eles são dissolvidos; Estar consciente da estreiteza e seus muitos resultados implica na profunda compreensão dele em todos os diferentes níveis da consciência – pequenez nas coisas, na relação, nas ideias. Quando estamos conscientes de sermos pequenos ou violentos ou invejosos, fazemos um esforço para não sermos; condenamos, pois desejamos ser outra coisa. Essa atitude condenatória põe fim à compreensão do que é e de seu processo. O desejo de dar fim à ganância é outra forma de autoafirmação e, por isso, é causa de conflito e dor continuada.

Interrogante: O que há de errado com o pensamento intencional se ele é lógico?

Krishnamurti: Se o pensador está inconsciente de si mesmo, embora ele possa ser intencional, sua lógica o levará à miséria inevitavelmente; se ele estiver no comando, numa posição de poder, ele traz miséria e destruição para os outros. É isso que está acontecendo no mundo, não? Sem autoconhecimento o pensamento não se baseia na realidade, está sempre em contradição e suas atividades são prejudiciais e nocivas.

Voltando a nossa questão: só pela conscientização pode haver a cessação da causa do conflito. Esteja consciente de qualquer hábito de pensamento ou ação, então você reconhecerá o processo condenatório, racional que impede a compreensão. Pela conscientização – a leitura do livro do hábito página a página – vem o autoconhecimento. É a verdade que liberta, não seu esforço para ser livre. A conscientização é a solução de nossos problemas; devemos experimentar com ela e descobrir sua verdade. Seria loucura simplesmente aceitar; aceitar não é compreender. Aceitação ou não-aceitação é um ato positivo que impede a experimentação e a compreensão. A compreensão que chega com experiência e autoconhecimento traz confiança.

Esta confiança pode ser chamada fé. Não é a fé do tolo; não é fé em alguma coisa. A ignorância pode ter fé na sabedoria, a escuridão na luz, a crueldade no amor, mas essa fé é ainda ignorância. Esta confiança, ou fé, de que estou falando vem pela experimentação no autoconhecimento, não por aceitação e esperança. A autoconfiança que muitos têm é resultado da ignorância, da aquisição, autoglorificação, ou da capacidade. A confiança de que estou falando é compreensão, não ‘eu compreendi’, mas compreensão sem autoidentificação. A confiança ou fé em alguma coisa, conquanto nobre, traz apenas obstinação, e obstinação é outro termo para credulidade. Os espertos destruíram a fé cega, mas quando se encontram em sério conflito ou sofrimento, aceitam a fé ou se tornam cínicos. Crer não é ser religioso; ter fé em alguma coisa que é criada pela mente não é estar aberto para o real. A confiança surge; ela não pode ser fabricada pela mente; a confiança vem com experimento e descoberta; não experimento com crença, teoria, ou memória, mas experimentação com autoconhecimento. Esta confiança, ou fé, não é autoimposta nem se identifica com crença, formulação, esperança. Ela não é o resultado de desejo expandido. Experimentando com a conscientização há uma descoberta que é libertadora em sua compreensão. Este autoconhecimento pela conscientização passiva é de momento a momento, sem acumulação; é infinito, verdadeiramente criativo. Pela conscientização vem a vulnerabilidade à realidade.

Para estar aberto, vulnerável ao real, o pensamento deve deixar de ser acumulativo. Não é que esse pensamento-sentimento deve se tornar não-ganância – o que é ainda acumulação, uma forma negativa de autoexpansão – mas ele deve ser não-ganancioso. Uma mente gananciosa é uma mente em conflito; uma mente gananciosa é sempre medrosa, invejosa em seu crescimento próprio e realização. Tal mente está sempre mudando os objetos de seu desejo, e essa mudança é considerada crescimento; a mente gananciosa que renuncia ao mundo a fim de buscar a realidade, Deus, é ainda gananciosa; a ganância é sempre inquieta, sempre em busca de crescimento, desempenho, e essa atividade inquieta cria inteligência autoafirmativa, mas não é capaz de compreender o real.

A ganância é um problema complexo! Para viver no mundo da ganância sem ganância é preciso profunda compreensão; viver simplesmente – ganhando o sustento corretamente num mundo organizado a partir da agressão e expansão econômica – só é possível para aqueles que estão descobrindo riquezas interiores.

Interrogante: No próprio ato de vir aqui não estamos em busca de alguma centelha que nos ilumine?

Krishnamurti: O que você está buscando?

Interrogante: Sabedoria e conhecimento.

Krishnamurti: Por que você busca?

Interrogante: Buscamos preencher o profundo vazio interior oculto.

Krishnamurti: Estamos, então, buscando alguma coisa para preencher nosso vazio; o preenchimento nós chamamos de conhecimento, sabedoria, verdade e assim por diante. Então não estamos em busca da verdade, sabedoria, mas de algo para preencher nossa dolorosa solidão. Se pudermos encontrar aquilo que possa enriquecer nossa pobreza interior, pensamos que nossa busca terminará. Ora, pode alguma coisa preencher esse vazio? Alguns estão dolorosamente conscientes dele e outros não; alguns procuraram escapar com atividade, com estímulo, com rituais misteriosos, ideologias e assim por diante; outros estão conscientes desse vazio, mas não encontraram um modo de encobri-lo. A maioria de nós conhece este medo, este pânico do nada. Procuramos superar esse medo, esse vazio; procuramos alguma coisa que possa curar a penosa agonia da deficiência interior. Enquanto estiver convencido de que pode encontrar alguma saída, você continuará procurando, mas não faz parte da sabedoria ver que toda saída, por mais sedutora que seja, é inútil? Quando a verdade sobre a saída se evidenciar, você persistirá em sua busca? Obviamente não. Então aceitamos inevitavelmente o que; esta rendição completa a o que é, é a verdade libertadora, não a obtenção dos objetos da busca.

Nossa vida é conflito, dor; ansiamos por segurança, permanência, mas estamos presos na rede do impermanente. Nós somos o impermanente. Pode o impermanente encontrar o eterno, o infinito? Pode a ilusão encontrar a realidade? Pode a ignorância encontrar a sabedoria? Só com o fim do impermanente surge o permanente; com o fim da ignorância existe sabedoria. Estamos interessados no fim do impermanente, do ego.

Interrogante: Um de nossos grandes mestres disse, “Procure e você encontrará.” Não é vantajoso procurar?

Krishnamurti: Com essa pergunta nós nos revelamos e como estamos pouco conscientes dos caminhos de nosso pensamento. Estamos continuamente pensando no que é vantajoso para nós e o que desejamos. Você considera que uma mente que está buscando proveito pode encontrar a verdade? Se ela estiver buscando a verdade como uma vantagem, então não está mais em busca da verdade. A verdade está além e acima de toda vantagem pessoal e ganho. Uma mente em busca de ganho, aquisição, não pode encontrar a verdade. A procura de ganho é por segurança, por refúgio; e a verdade não é uma segurança, um refúgio. A verdade é o libertador, afastando todo refúgio e segurança.

Além disso, por que você procura? Não é porque você está em confusão e dor? Em vez de procurar uma saída por meio de atividade, psicólogos, sacerdotes, rituais, você não deve procurar a causa do conflito e do sofrimento em você mesmo? A causa é o ego, ansiar. A libertação da confusão e da dor está em você mesmo, e outra pessoa não pode libertar você.

Interrogante: Se pudermos abrir nossa consciência para a verdade, isso não é suficiente?

Krishnamurti: Nós voltamos a essa pergunta de diferentes formas vezes e vezes. Pode a mente, a consciência de si, que é produto do tempo, compreender ou experimentar o infinito? Quando a mente busca, ela encontrará a verdade, Deus? Quando a mente afirma que deve estar aberta para a realidade, ela é capaz disso? Se o pensamento estiver consciente de que é produto da ignorância, do ego limitado, então existe uma possibilidade para ele cessar de formular, imaginar, estar ocupado com ele mesmo. Só pela conscientização o pensamento pode transcender a si mesmo, não pela vontade, que é outra forma de desejo autoexpansivo. Quando estamos alegres? É resultado de cálculo, de um ato da vontade? Isso acontece quando os problemas conflituosos e demandas estão ausentes. Como o lago fica calmo quando o vento para, do mesmo modo a mente fica imóvel quando o anseio, com seus problemas, cessa. A mente não pode se induzir a ficar quieta, ficar imóvel; o lago não fica calmo até o vento cessar. Até que os conflitos que o ego cria cessem, não pode haver tranquilidade. A mente tem que compreender a si mesma e não tentar fugir para a ilusão, ou buscar alguma coisa que ela é incapaz de experimentar ou compreender.

Interrogante: Existe uma técnica para se estar consciente?

Krishnamurti: Em que implica essa pergunta? Você procura um método com o qual possa aprender a estar consciente. Conscientização não é o resultado de prática, hábito, ou tempo. Como um dente que causa intensa dor tem que ser visto imediatamente, também o sofrimento, se intenso, exige alívio urgente. Mas nós procuramos uma saída ou uma explicação para ele; evitamos a questão real que é o ego. Porque não estamos enfrentando nosso conflito, nosso sofrimento, nos asseguramos preguiçosamente que devemos fazer um esforço para estar conscientes, e demandamos uma técnica que nos torne conscientes.

Então não é por um ato da vontade que a verdade é revelada, mas por uma vulnerabilidade tranquila o real surge.

28 de abril de 1946