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14/05/1944 – T

Primeira Palestra em Oak Grove

Em meio a tanta confusão e sofrimento, é essencial encontrar compreensão criativa de nós mesmos, pois sem ela nenhuma relação é possível. Apenas por meio do pensar correto pode haver compreensão. Nem líderes nem um novo conjunto de valores nem projeto podem produzir essa compreensão criativa; apenas através de nosso próprio esforço correto pode haver compreensão correta.

Então, como é possível encontrar essa compreensão essencial? Por onde devemos começar a descobrir o que é real, o que é verdadeiro, em toda esta conflagração, confusão e miséria? Não é importante descobrir por nós mesmos como pensar corretamente sobre guerra e paz, sobre condições econômicas e sociais, sobre nossa relação com os companheiros humanos? Certamente existe uma diferença entre pensar correto e o pensamento correto ou condicionado. Nós podemos ser capazes de produzir em nós mesmo, imitativamente, pensamento correto, mas tal pensamento não é pensar correto. O pensamento correto ou condicionado não é criativo. Mas quando sabemos como pensar corretamente por nós mesmos, que é estar vivo, dinâmico, então é possível produzir uma cultura nova e mais feliz.

Durante essas palestras, eu gostaria de desenvolver o que me parece ser o processo do pensar correto de modo que cada um de nós seja verdadeiramente criativo, e não simplesmente fechados em uma série de ideias ou preconceitos. Como começaremos, então, a descobrir por nós mesmos o que é pensar correto? Sem pensar correto não existe possibilidade de felicidade. Sem pensar correto nossas ações, nosso comportamento, nossas afeições não têm base. O pensar correto não é para ser descoberto através de livros, participando de algumas palestras, ou simplesmente ouvindo algumas ideias de pessoas sobre o que é pensar correto. O pensar correto é para ser descoberto por nós mesmos através de nós mesmos.

O pensar correto vem com o autoconhecimento. Sem autoconhecimento não há pensar correto. Sem conhecer a si mesmo, o que você pensa e o que você sente não pode ser verdadeiro. A origem de toda compreensão está na compreensão de si mesmo. E se você puder descobrir quais as causas de seu pensamento-sentimento, e dessa descoberta saber como pensar-sentir, então aí está o início da compreensão. Sem conhecer a si mesmo, o acúmulo de ideias, a aceitação de crenças e teorias não tem base. Sem conhecer a si mesmo, você estará sempre preso na incerteza, dependendo de disposição, de circunstâncias. Sem conhecer a si mesmo completamente, você não pode pensar corretamente. Certamente, isso é óbvio. Se não sei quais são meus motivos, minhas intenções, meu substrato, meus pensamentos-sentimentos privados, como posso concordar ou discordar do outro? Como posso avaliar ou estabelecer minha relação com o outro? Como posso descobrir qualquer coisa da vida se não conheço a mim mesmo? E conhecer a mim é uma enorme tarefa que requer constante observação, conscientização meditativa.

Essa é nossa primeira tarefa até antes do problema de guerra e paz, dos conflitos econômicos e sociais, da morte e imortalidade. Essas questões surgirão, elas estão fadadas a surgir, mas descobrindo a nós mesmos, essas questões serão corretamente respondidas. Então, aqueles que são realmente sérios a respeito dessas questões devem começar consigo mesmos a fim de compreenderem o mundo do qual fazem parte, Sem compreender a si mesmo, você não pode compreender o todo.

Autoconhecimento é o começo da sabedoria. O autoconhecimento é cultivado através da busca individual de si mesmo. Não estou colocando o indivíduo em oposição à massa. Eles não são incompatíveis. Você, o indivíduo, é a massa, o resultado da massa. Em nós, como você descobrirá se examinar profundamente, estão tanto os muitos quanto o particular. É como uma correnteza que flui constantemente, deixando pequenos redemoinhos, e esses redemoinhos chamamos de individualidade, mas eles são o resultado deste constante fluxo de água. Seus pensamentos-sentimentos, aquelas atividades mentais-emocionais – elas não são o resultado do passado, daquilo que chamamos os muitos? Você não tem os mesmos pensamentos-sentimentos que seu vizinho?

Assim, quando falo do indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa. Ao contrário, eu quero remover esse antagonismo. Esse antagonismo entre a massa e você, o indivíduo, cria confusão e conflito, crueldade e miséria. Mas se pudermos compreender como o indivíduo, o ‘você’, é parte do todo – não só misticamente, mas realmente – então poderemos nos libertar felizmente e espontaneamente da maior parte de nosso desejo de competir, ter sucesso, iludir, oprimir, ser cruel, ou se tornar um seguidor ou um líder. Aí, vamos considerar o problema da existência de forma totalmente diferente. E é importante compreender isso profundamente. Enquanto nos considerarmos como indivíduos, separados do todo, competindo, obstruindo, nos opondo, sacrificando os muitos pelo particular ou o particular pelos muitos, todos estes problemas que surgem desse antagonismo conflituoso não terão solução feliz e duradoura, pois eles são o resultado do pensamento-sentimento errado.

Agora, quando falo sobre o indivíduo, não o estou colocando em oposição à massa. O que eu sou? Sou um resultado; eu sou o resultado do passado, de inumeráveis camadas do passado, de uma série de causas-efeitos. E como posso estar em oposição ao todo, o passado, quando sou o resultado de tudo isso? Se eu, que sou a massa, o todo, se não compreendo a mim mesmo, não apenas o que está fora da pele, objetivamente, mas subjetivamente, dentro da pele, como posso compreender o outro, o mundo? Para compreender a si mesmo é preciso desprendimento tolerante e calmo. Se você não compreender a si mesmo, não compreenderá nada mais; você pode ter muitos ideais, crenças e formulações, mas elas não terão realidade. Serão ilusões. Então você deve conhecer a si mesmo para compreender o presente e, através do presente, o passado. Do presente conhecido, as camadas ocultas do passado são descobertas e essa descoberta é libertadora e criativa.

Compreender a nós mesmos requer o estudo objetivo, amável, desapaixonado de nós mesmos, nós sendo o organismo como um todo – nosso corpo, nossos sentimentos, nossos pensamentos. Eles não estão separados, estão inter-relacionados. Só quando compreendemos o organismo como um todo, podemos ir além e descobrir mais, coisas maiores e mais vastas. Mas sem essa compreensão primária, sem estabelecer a fundação correta para o pensar correto, não podemos chegar a maiores alturas.

Criar em cada um de nós a capacidade de descobrir o que é verdadeiro se torna essencial, pois o que for descoberto é libertador e criativo. Pois o que for descoberto é verdadeiro. Ou seja, se, simplesmente, nos adaptamos a um padrão do que devemos ser ou nos rendemos a um anseio, isso produz certos resultados que são conflituosos, confusos, mas no processo do estudo de nós mesmos, estamos numa viagem de autodescoberta, que traz alegria.

Há uma segurança no pensamento-sentimento negativo mais do que no positivo. Nós assumimos de maneira positiva aquilo que somos, ou cultivamos positivamente nossas ideias sobre as outras pessoas ou sobre nossas próprias formulações. E por essa razão dependemos da autoridade, das circunstâncias, esperando por meio disso estabelecer uma série de ideias e ações positivas. Por outro lado, se você examinar, verá que existe concordância na negação; existe segurança no pensamento negativo, que é a forma mais elevada de pensamento. Uma vez que você descubra a verdadeira negação e concordância na negação, então poderá construir na positividade.

A descoberta que está no autoconhecimento é árdua, pois o início e o fim estão em nós. Buscar felicidade, amor, esperança fora de nós leva à ilusão, ao sofrimento; encontrar felicidade, paz, alegria dentro de nós requer autoconhecimento. Somos escravos das pressões e demandas imediatas do mundo, e somos afastados por tudo isso e dissipamos nossas energias em tudo isso e, assim, temos pouco tempo para estudar a nós mesmos. Para estar profundamente cientes de nossos motivos, de nossos desejos de aquisição, de se tornar, é preciso constante conscientização interior. Sem compreender a nós mesmos, planos superficiais de reforma econômica e social, conquanto necessários e benéficos, não produzirão união no mundo, mas apenas mais confusão e miséria.

Muitos de nós consideramos que a reforma social de um tipo ou de outro trará paz ao mundo; ou reforma social ou uma religião especializada se sobrepondo a todas as outras trará felicidade ao homem. Eu creio que existam cerca de oitocentas ou mais seitas religiosas neste país, todas competindo, convertendo. Você pensa que a religião competitiva trará paz, união e felicidade à humanidade? Você acha que alguma religião especializada, seja hinduísmo, budismo ou cristianismo, trará paz? Ou devemos deixar de lado todas as religiões especializadas e descobrir a realidade por nós mesmos? Quando vemos o mundo destruído por bombas e sentimos os horrores que estão acontecendo nele; quando o mundo está fragmentado por religiões separadas, nacionalidades, raças, ideologias, qual é a resposta para tudo isso? Nós não podemos apenas continuar vivendo brevemente e morrendo, e esperar que alguma boa vontade virá daí. Não podemos deixar que outros tragam felicidade e paz para a humanidade; pois a humanidade somos nós mesmos, cada um de nós. Onde está a solução senão em nós mesmos? Descobrir a verdadeira resposta requer profundo pensamento-sentimento, e poucos de nós querem resolver essa miséria. Se cada um de nós considerasse esse problema como se originando dentro de nós e não ficasse simplesmente seguindo desamparadamente nesta apavorante confusão e miséria, então encontraríamos uma resposta simples e direta.

Estudando e compreendendo a nós, surgirá clareza e ordem. E só pode haver clareza no autoconhecimento, que alimenta o pensar correto. O pensar correto vem antes da ação correta. Se nos tornamos conscientes de nós e, assim, cultivamos o autoconhecimento de onde nasce o pensar correto, então poderemos criar um espelho em nós mesmos que refletirá, sem distorção, todos os nossos pensamentos-sentimentos. Estar assim consciente é muito difícil já que nossa mente é usada para vaguear e ser distraída. Suas vagueações, suas distrações são seus próprios interesses e criações. Na compreensão delas – não simplesmente as colocando de lado – vem o autoconhecimento e o pensar correto. É apenas na inclusão e não na exclusão, não através de aprovação ou condenação que surge a compreensão.

Interrogante: Qual é meu direito em minha relação com o mundo?

Krishnamurti: É uma pergunta interessante e instrutiva. O interrogante parece se colocar em oposição ao mundo e pergunta, então, quais são seus diretos na relação a ele. Ele está separado do mundo? Ele não faz parte do mundo? Ele tem algum direito separado do todo? Ele, se apartando, compreenderá o todo? A parte não é o todo, mas para compreender o todo, a parte não deve se colocar em oposição a ele. No entendimento da parte, o todo é compreendido. Quando o indivíduo está em oposição ao mundo, então ele clama por seus direitos; mas por que ele se colocaria em oposição a ele? A atitude de oposição, do ‘Eu’ e do ‘não-Eu’, impede a compreensão. Ele não é parte do todo? Seus problemas não são os problemas do mundo? Seus conflitos, confusões e misérias não são aqueles de seu vizinho, próximo ou distante? Quando ele se tornar consciente de si, saberá que faz parte do todo. Ele é o resultado do passado com seus medos, esperanças, ganâncias, aspirações e assim por diante. Esse resultado procura um direito em sua relação com o todo. Ele tem algum direito enquanto for invejoso, ambicioso, cruel? Só quando ele não considerar a si mesmo como um indivíduo, mas como um resultado e uma parte do todo, ele conhecerá aquela liberdade em que não existe oposição, dualidade. Mas enquanto ele for do mundo com sua ignorância, crueldade, sensualidade, então ele não terá relação apartada disso.

Não devíamos mesmo usar a palavra indivíduo, nem as palavras meu e seu, pois elas não têm significado fundamentalmente. Eu sou o resultado de meu pai e minha mãe e da influência ambiental do país e da sociedade. Se me coloco em oposição, não há compreensão; a combinação de opostos não produz compreensão. Mas se me conscientizo e observo os caminhos da dualidade, então começo a sentir a nova liberdade dos opostos. O mundo está dividido em opostos, o branco e o preto, o bom e o mau, meu e seu e assim por diante. Na dualidade não existe compreensão, cada antítese contém seu próprio oposto. Nossa dificuldade está em pensar nesses problemas de forma nova, pensar no mundo e em você mesmo de um ponto-de-vista completamente diferente, observar silenciosamente, sem identificar ou comparar. As ideias que você pensa são o resultado do que outros pensaram em combinação com o presente. A singularidade real está na descoberta do que é verdadeiro, e estar nessa descoberta. Essa singularidade, alegria e libertação que vêm dessa descoberta não são encontradas no orgulho das posses, do nome, atributos físicos e tendências. A liberdade verdadeira chega com o autoconhecimento que traz o pensar correto; no autoconhecimento está a descoberta do verdadeiro, que põe fim à nossa ignorância e sofrimento.

Pela conscientização de si e o autoconhecimento a paz é encontrada, e nessa serenidade está a imortalidade.

14 de maio de 1944