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06/12/1936 – T

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Primeira Palestra em Madras

Neste mundo de conflito e sofrimento, a compreensão correta, por si só, pode dar origem à ordem inteligente e felicidade duradoura. Para despertar o pensamento inteligente, deve haver esforço correto da parte de cada indivíduo – esforço que não é induzido por reações e fantasias pessoais, por crenças e ideais. Apenas tal pensamento pode produzir uma organização da vida, e verdadeiro relacionamento entre o indivíduo e a sociedade. Devo tentar ajudar-vos, o indivíduo, a pensar direta e simplesmente, mas você deve ter o intenso desejo de compreensão. Você deve libertar-se do preconceito da lealdade a crenças e dogmas particulares, dos preconceitos da conduta habitual moldada por tradições de irreflexão. Você deve ter o desejo ardente de experimentação e ação, pois apenas através da ação, pode você verdadeiramente perceber que autoridade, crenças, ideais são obstáculos definitivos à inteligência, ao amor.

Mas receio que muitos de vós vem meramente pelo hábito de ouvir estas palestras. Isto não é um encontro político. Nem desejo incitar-vos a alguma ação econômica, social, ou religiosa. Não quero discípulos, nem busco o vosso louvor. Não quero tornar-me um líder ou criar uma nova ideologia. Desejo apenas que tentemos pensar juntos claramente, de forma sã, inteligentemente; e, deste processo de pensamento verdadeiro, a ação se seguirá inevitavelmente. Não se pode separar o pensamento da ação.

A compreensão correta da vida não pode surgir se, de alguma forma, existe medo, compulsão. A compreensão criativa da vida é bloqueada quando o pensamento e a ação são constantemente impedidos pela autoridade – a autoridade da disciplina, da recompensa, e punição. Pela direção da ação criativa, vocês discernirão que a busca cruel por segurança individual deve inevitavelmente levar à exploração e ao sofrimento. Apenas através de pensamento-ação dinâmicos, pode surgir aquela revolução interior completa, com sua possibilidade de verdadeiro relacionamento humano entre o indivíduo e a sociedade.

Qual é, então, a nossa resposta individual ao presente problema complexo do viver? Encaramos a vida com o ponto de vista particular da religião, da ciência ou economia? Nos agarramos à tradição, quer antiga ou nova, sem pensamento? Pode esta coisa prodigiosamente sutil, complexa, chamada vida, ser compreendida dividindo-a em partes diferentes – como política, social, religiosa, científica – colocando ênfase numa parte e desconsiderando as outras?

É moda hoje em dia dizer, “Resolva o problema econômico primeiro, e então todos os outros problemas serão resolvidos”. Se consideramos a vida meramente como um processo econômico, então o viver torna-se mecânico, superficial, e destrutivo. Como podemos vislumbrar o processo psicológico sutil e desconhecido da vida, meramente dizendo que devemos resolver primeiro a questão do pão? A mera repetição de slogans não exige muito pensamento.

Não quero dizer que o pão não é um problema; ele é um imenso problema. Mas, ao colocar ênfase nele, e ao fazer dele o nosso principal interesse, abordamos a complexidade da vida com estreiteza mental, e portanto, apenas complicamos ainda mais o problema.

Se somos religiosos, isto é, se nossas mentes são condicionadas por crenças e dogmas, então meramente adicionamos mais complexidade à vida. Devemos ver a vida compreensivelmente, com profunda inteligência, mas a maioria de nós tenta resolver os problemas da vida com mentes condicionadas, sobrecarregadas com a tradição. Se você é um Hindu, busca compreender a vida através das crenças particulares, preconceitos, e tradições do Hinduísmo. Se é um Budista, um socialista, ou um ateísta, você tenta compreender a vida apenas através de seu credo especial. Uma mente condicionada, limitada, não pode compreender o movimento da vida.

Por favor, não busquem em mim, uma panaceia, um sistema, ou um modo de conduta, porque considero sistemas, modos de conduta, e panaceias como barreiras à compreensão inteligente da vida.

Para compreender a complexidade da vida, a mente deve ser extremamente flexível e simples. A simplicidade da mente não é o vazio da negação, renúncia, ou aceitação; é a plenitude da compreensão. É a direção da percepção, do pensamento integral, sem os obstáculos do preconceito, medo, tradição e autoridade. Libertar a mente dessas limitações é árduo. Experimentem, por vós mesmos, e verão quão difícil é ter um pensamento integral, não condicionado pela memória provocativa, com sua autoridade e disciplina. E, ainda assim, com tal pensamento apenas, podemos compreender o significado da vida.

Por favor, vejam a importância de uma mente flexível, uma mente que conhece os meandros do medo, com suas ilusões, e está totalmente livre deles, uma mente que não é controlada pelas influências ambientais. Antes de podermos compreender o completo significado da vida, seus processos vitais, o pensamento não condicionado pelo medo é necessário; e, para despertar esse pensamento criativo, devemos tornar-nos conscientes do complexo, do real.

O que quero dizer com “estar consciente”? Quero dizer, não apenas, a percepção objetiva da complexidade inter-relacionada da vida, mas também a consciência dos processos psicológicos escondidos, sutis, dos quais surgem a confusão, alegria, luta e dor. A maioria de nós pensa que está consciente da complexidade objetiva da vida. Estamos conscientes de nossos trabalhos, de nossos patrões, de nós mesmos, como empregadores ou empregados. Estamos conscientes do atrito na relação. Esta percepção da mera complexidade objetiva da vida não é, para mim, consciência plena. Tornamo-nos plenamente conscientes apenas quando relacionamos profundamente o psicológico à complexidade objetiva. Quando somos capazes de relacionar, através da ação, o escondido com o conhecido, então estamos começando a ficar conscientes.

Antes de podermos despertar, em nós mesmos, esta plena consciência da qual somente pode vir expressão criativa verdadeira, devemos tornar-nos cientes do real, isto é, dos preconceitos, medos, tendências, vontades, com suas muitas ilusões e expressões. Quando estamos, assim, conscientes, devemos saber a relação do atual com a nossa ação, que limita e condiciona o pensamento-emoção, com suas reações, esperanças e fugas. Quando estamos conscientes do real, existe a imediata percepção do falso. Essa mesma percepção do falso é a verdade. Então, não há nenhum problema de escolha, de bem e mal, falso e verdadeiro, essencial e não essencial. Na percepção “do que é”, o falso e o verdadeiro são conhecidos, sem o conflito da escolha.

Agora, vocês pensam que são capazes de escolher entre o falso e o verdadeiro. Essa escolha é baseada no preconceito; ela é induzida por ideais preconcebidos, pela tradição, esperança e portanto, a escolha é apenas uma modificação do falso. Mas, se vocês são capazes de perceber o real, sem qualquer desejo ou identificação, então, nessa mesma percepção do falso, há o início do verdadeiro. Isso é inteligência, que não é baseada no preconceito, tradição, vontade e que por si só, pode dissolver a essência sutil de todos os problemas espontaneamente, ricamente, e sem a compulsão do medo.

Deixe-nos descobrir, se pudermos, o que é o real, sem interpretação, sem identificação. Quando falo de vossas crenças e teorias, vossas devoções, vossos Deuses, vossos ideais e líderes, quando falo da doença do nacionalismo, de sistemas, de gurus e Mestres, não projetem reações defensivas. Tudo o que estou tentando fazer é apontar o que considero ser a causa de conflito e sofrimento.

A ação que resulta de pensamento integral, sem identificação e interpretação, despertará inteligência criativa. Se vocês são profundamente atentos, começarão a ver o que é verdadeiro; então, despertarão a inteligência sem o conflito contínuo da escolha. A mera conduta, de acordo com um padrão, é imitativa, não criativa. Ação inteligente não é imitação; apenas a mente condicionada está sempre se adaptando aos padrões, porque tem medo de conhecer “o que é”. Se perceberem o real em toda a sua claridade, como ele é, sem interpretação e identificação, então no próprio instante de percepção, existe o alvorecer da nova inteligência. Esta inteligência, por si só, pode resolver os problemas tremendamente complicados, conflituosos, e dolorosos da vida.

Qual a imagem de nós mesmos e do mundo? A divisão entre nós e o mundo parece real, embora tal divisão desapareça quando examinamos profundamente o indivíduo e a multidão. O real é o conflito entre o indivíduo e a multidão, mas o indivíduo é a multidão e a multidão é o indivíduo. A individualidade ou a multidão cessa, quando as características do individual ou da multidão desaparecem. A multidão é ignorância, vontade, medo, no indivíduo. Todas as regiões inexploradas da consciência, os estados meio despertos do indivíduo, formam a multidão. É apenas quando o indivíduo e a multidão, como forças conflitantes, deixam de existir, que pode haver inteligência criativa. É a divisão entre a multidão e o indivíduo, que não é senão uma ilusão, que cria confusão e miséria. Você não é um indivíduo completo, nem é você totalmente a multidão; você é tanto o indivíduo quanto a multidão.

Nas mentes da maioria das pessoas, há esta divisão infeliz entre o indivíduo e a multidão; há a ideia de que, organizando a multidão, você trará liberdade e expressão criativas e individuais. Se você está pensando em organizar a multidão para ajudar a libertar o criativo do indivíduo, então tal organização se torna o meio de exploração sutil.

Existem duas formas de exploração, a óbvia e a sutil. A óbvia se tornou habitual, que conhecemos e pela qual passamos, mas é preciso percepção profunda, para reconhecer as formas sutis de exploração. Uma classe, que tem a riqueza, explora a multidão. Os poucos que controlam a indústria exploram os muitos que trabalham. Riqueza concentrada nas mãos de poucos, cria distinções e divisões sociais; e, através dessas divisões, temos o nacionalismo econômico e sentimental, a constante ameaça de guerra, com todos os seus terrores e crueldades, a divisão de pessoas em raças e nações, com sua luta feroz por autossuficiência, os sistemas hierárquicos de destreza e privilégio classificados.

Tudo isto é óbvio e, como é óbvio, vocês se acostumaram com isso. Vocês dizem que o nacionalismo é inevitável; então, cada nação se afirma e se prepara para a guerra e a chacina. Como indivíduos, vocês estão inconscientemente contribuindo para a guerra, enfatizando a vossa separação nacional. O nacionalismo é uma doença, quer neste país, na Europa, ou na América. A busca por segurança individual ou nacional apenas intensifica o conflito e o sofrimento humanos.

A forma sutil de exploração não é facilmente percebida, porque é um processo íntimo de nossa existência individual. É o resultado da busca por certeza, por conforto no presente, e no futuro. Agora, esta busca, que chamamos de busca pela verdade, por Deus, tem levado à criação de sistemas de exploração, que chamamos de crenças, ideais, dogmas, e à sua perpetuação por parte de padres, gurus, e guias. Porque vocês, como indivíduos, estão em confusão e dúvida, esperam que outro vos traga iluminação. Vocês esperam superar o sofrimento e confusão seguindo outro, seguindo um sistema de disciplina ou algum ideal. Esta tentativa de superar a miséria e a dor se submetendo a outro, regulando a sua conduta de acordo com um padrão, é meramente uma fuga da realidade. Então, na vossa busca de uma fuga da realidade, vocês vão a outro para ser enriquecidos e confortados, e assim, engendram o processo de exploração sutil. A religião, como ela é, prospera no medo e na exploração.

Quantos de vós estão conscientes de que estão buscando segurança – uma fuga da constante tormenta do medo, da confusão, do sofrimento? O desejo por segurança, por certeza psicológica, tem encorajado uma forma sutil de exploração através de disciplina, compulsão, autoridade, tradição.

Portanto, vocês devem discernir, por vós mesmos, o processo de vosso próprio pensamento-ação, nascido da ignorância e do medo, que dá origem a exploração cruel, confusão e sofrimento. Quando existe a compreensão do real, sem a luta da escolha, há amor, o êxtase da verdade.

06 de dezembro de 1936.